Terra vazia

Os jornais estão sangrando... as pessoas, desconcertadas, vagam incansavelmente por lugares incertos. E eu, olhar meu, olhar incestuoso frustrado, não consegue distinguir as cenas que passam com tanta rapidez, são retinas deslocadas.

Sentado, sou introspecção... apenas os jornais me ligam ao mundo exterior. Parece mesmo que preciso de sangue alheio para sentir o coração batendo. As mortes no Rio de Janeiro não me fazem chorar, muito menos me causam arrepios, mas me dão a terrível sensação de existência. É, minha subjetividade aprendeu a ler desgraças, o que antes era apenas exótico já tornou-se essencial. Mas o jornal me liga a mim. Essa corrida veloz faz qualquer piloto tentar olhar à arquibancada.

Abri o jornal e trouxe a xícara de café para mais perto. Meus olhos pulam nas Coréias e sinto-me em São Paulo de guerra. As torturas policias "Ministério Público investiga possíveis casos..." são mais indícios da minha existência. Encontro-me perdido, mas o sofrimento alheio me conforta! Percebo que procuro me matar todos os dias com as notícias. Matar e ressucitar-me numa xícara de chá ou café. Percebo que minha vida está diretamente ligada às mortes, à minha morte principalmente. Se desaparecessem os jornais!... hipótese suicida, não sou imortal ainda. Meus olhos continuam procurando sangue (as notícias de ontem estão pobres!...). Desencontro-me e continuo perdido!

O café é o esquecimento da minh'alma! Enquanto morro nas notícias sangrentas (talvez só aí eu exista de fato), desloco-me à terra solitária de mim num gole de bebida. Vou-me e, às vezes, voo de mim. Talvez a verdadeira morte esteja no esquecimento (ou seria o contrário?). Talvez só esteja verdadeiramente vivo quando pressinto a morte... (e morro ao esquecer de mim?)

-Devaneios são sempre confusos e os lapsos são comuns...

Continuo sentado solitariamente. Mesmo diante da inscrição "Sala dos professores", continuo repensando sobre meus jornais. Meu pensamento é um mosaico de sangue! A vida só existe quando há notícias trágicas o suficiente para fazer o sangue circular. O que é morte se faz vida em mim. Sou um jornal de mortes e vidas... ontem era um menino que sonhava ser mestre em capoeira, mas fui interrompido por uma bala policial e morri nos braços do pai. Sou o Rio e a Coréia, de janeiro a janeiro, de norte a sul.

Afasto a xícara de café com violência o que a faz cair e manchar o chão. Alguém entra na sala e soa o sinal anunciando mais uma aula. A vida é queda, mas logo vem alguém apertar o sinal... queria ter agora minha xícara de café para soar meu sinal de esquecimento. Preciso do artifício da morte (jornais de sangue) para ter existência, assim como preciso me matar para que seja ressuscitado posteriormente. Um gole de café me faria esquecer... olhar nos jornais teria o milagre da ressurreição. Sei, talvez Jesus tenha visto um banquete de notícias sangrentas e bebido muito café... (o mistério da ressurreição foi resolvido!)... talvez todo revolucionário tenha o sofrimento como motor de existência; tenha também uma xícara de café para esquecer-se.

A xícara caiu... há bastante sangue à mesa, mas o café foi derramado. Em meu coração agora não há reconciliação imediata... vejo os jornais - mais sangue -, farto-me de notícias e o coração dispara. A mente parece vazada... o estômago range facas amoladas e meu café está derramado. Caio ao chão e, como cachorro feroz, passo a língua na superfície banhada do líquido preto. Continuo sugando, mas pouco líquido me vem à boca... o coração sangra nessa corrida... já é linha de chegada... e voo... vou sem café ao lado!

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