Devívido *projeto de um novo romance*






Devívido

I

O jornal aberto nessa manhã não encerra nada além dessas páginas viradas (ao acaso*). Tudo ali, sem salvaguardar o proibido. Os livros sobre a mesa de jacarandá (ah, a solidão do jacarandá*) dizem pouco mais que uma floresta devastada. Nem mesmo o jogo de xadrez montado aos modos de Bob Fischer, agora, faz algum sentido... 
Contaram-me que abrir um jornal era a experiência maior de adentrar em um novo sangue, um corpo sem vértebras (nunca acreditei*). Por muito tempo, escrevi diversas matérias a jornais que nunca movimentaram o meu sangue. Na verdade, pouco pratiquei a leitura; escrevia, escrevia. Quando penso na leitura dos pasquins, quando na universidade, ficava de sobressalto, me arrebatava (hoje, como seria? Faria esse sangue ferver?*). 
Abro o jornal e leio. Leio, leio como todos que abrem o jornal pela manhã à procura de algo que transcenda e traga o sol ao dia nublado, que deixe o sal a gosto, a leitura entusiasmo (mas o jornal, sempre continua na mesma página!; o tabuleiro na mesma posição!; não há movimentos!*).
Esse livro aberto: já não quero saber sequer o autor ou o gênero da obra. Uma página. Um livro, uma página de outro livro (o latido do cão lá fora*). Jamais me atreveria a olhar o som do latido. Ultimamente, é raro virar as páginas: o livro está na mesma página aberta dos dias anteriores (página treze*), desde minha chegada aqui. 
Quando chegamos, Cruciela resmungou por uma semana (que esposa aceitaria uma mudança tão drástica?*) Agora, minha esposa traz aquele prato novo (e é manhã: cheiro monótono de terra molhada*). O mesmo prato que você comia quando menino, vem!, diz ela. Reluto como quem teria algo a fazer na desobediência. Na Bahia, era comum o cuscuz temperado pela manhã. Minha mãe botava na cuscuzeira uma série sem fim: carne seca, mussarela, aipim, um infinito de tempero. Minha mulher traz cuscuz temperado e café (isso é que se chama manhã*). Como e bebo.
Como obra desse torpor, meu computador insiste sinalizando com o marcador de texto (vai escrever, Devívido*). Devo escrever um novo romance (um novo romance*). Preciso de um romance: meu verdadeiro xadrez de hoje. 
        Quando saímos da cidade para essa terra vermelha, a ideia era simples: vida no campo refaz a criatividade (fala de psicanalista vulgar*). Toda as tentativas de retomar a escrita para os jornais se esvaíram (bule vazio*). Terra molhada, bem. Levanto meu olhos, mas meu corpo não. E, sim, está chovendo. Escrever nunca havia sido um problema, até que os dedos se manifestassem. Primeiramente, eles adormeceram as pontas, em seguida e paulatinamente, os dedos enrijeceram... Nada de absurdo a ponto de obstruir a vida cotidiana, mas, quando diante de uma folha de papel, uma rigidez de ferro. 
Escrever nesse velho computador, nesse sítio do pai de Cruciella, é como um problema de xadrez (o verdadeiro*). Eu fujo do romance; quando percebo estou compondo problemas de xadrez (mate em seis lances*). Escrever é como procurar as possibilidades de mate (não há acolhida*). O que escrever? 
O analista, aquele vulgar, disse que o meu sintoma era desejo de escrever. Acrescentou ele: o enrijecimento dos seus dedos, associada a pouca criatividade, enceravam um verdadeiro desejo de escrita de algo real, próprio, verdadeiro (*sinthoma sanguíneo). Não sei por essa fala, mas fato é que sonhei... Estava em uma fazenda, escrevendo um romance. Daí pra frente, chego aqui: silêncio, sítio, esposa, computador, xadrez, café da manhã... Que tal escrever sobre vinhos?, diz ela. Escrever sobre vinhos, não escondo o riso de canto de boca... Da cor, gosto. O gosto, gosto.  
Nenhum escritor deseja estar no corpo de outro escritor, a não ser quando a própria criatividade o abandona. Hoje, eu podia ser o pior dos escritores, desde que houvesse vontade, inventividade (tesão*). Todos querem um novo romance, eu acho. Se eu fosse falar de família teria muito do que dizer: diria de igrejas. Igrejas. Diria de quando o pai Damião abriu uma nova igrejinha na Bahia. Os olhares espantados. O pastor era o meu pai, pregava a palavra, meu irmão tocava o órgão (aquele instrumento fora doado ao vizinho, posteriormente, o jogado fora com  a justificativa de ataque de cupim - pobres cupins não sabem tocar órgão*).  Alguém me disse que para escrever é preciso uma dose de ternura, de afeto (coisa de psicanálise*). Vai ver que a minha falta de compaixão é o que dificulta a escrita (*tenha compaixão cupínica!). Eu escrevia quando secundarista. Eu escrevia e logo um dizia "é carta!"; "é conto" (é o caralho*). Definir aqueles textos foram a maior tolice dos professores. Agora, quando penso em escrever, eu sou inundado da mesma pergunta: qual gênero é? Travo. Já viu alguma criança definir o gênero para escrever? Perguntava meu analista. Ele completava: Ternura e compaixão: você confunde esses nomes como quem esquece de si (todo esse blábláblá e nenhuma palavra advém ao projeto de romance*). Preciso de um romance. 

II

Café, ternura e compaixão. Tomo o café somente após esfriá-lo.  Abro o livro e a primeira frase não me satisfez – fecho-o de supetão. O susto. Fechei o livro como quem não queria encontrar de novo alguma coisa.
Mais um gole desse café gelado. Passo a página do jornal, e leio não mais que uma linha. Quando meninote, eu lia todo o jornal e contava tudo para o pai (lia a bíblia também*). Parei de contar o que lia, não me lembro, mas andaram rindo de mim (menino é besta, não gosta de ser zoado*). Hoje, acho que eu mais queria era ser zombado, que rissem de mim, da minha barriga, das minhas tetinhas... Eu devia sugerir isso aos novos escritores, mesmo não saindo uma letra desse romance: 
- A zoação talvez seja a chave da escrita.  
Quando leio, não avalio os livros pelo autor ou pela temática. Até quando me atrevo a estudar xadrez, também não o faço por tema. Estudo abertura do mesmo modo que estudo os finais de jogo (e até simultaneamente). Mas, quando vou escrever... Tema, gênero, enredo... E o rio seca. 
Uma única vez, eu resolvi estudar xadrez com um professor, Mestre Internacional, mas ele dizia para calcular cada milímetro do jogo; que eu devia estudar aberturas, após, meio jogo e, só depois, finais. Mas eu leio e estudo do mesmo modo que bebo café. Bebo café gelado; deixo a xícara onde for. Às vezes, até chego ao final da leitura de um romance (raramente*). Porém, geralmente, eu não me lembro dos finais dos livros, não há nada que me faça lembrar do último capítulo (medo de morrer, diabo!?*). Leio cegamente o desfecho dos livros; é como se não houvesse fim. Aprendi a desconhecer como terminam as coisas. Devia escrever assim: escrevendo, escrevendo... Sem pensar no final. 
Esse vinho à mesa de jacarandá (é cabernet*). Sorvo o gole e tento recordar o último gosto do vinho à boca – não há recordação. O vinho fica à boca e, enquanto há liquido, há gosto. Depois que bebo a última gota já não há cabernet, vinícola, vinho, carta, gosto (nada*). Apago o derradeiro gosto e bebo novamente.  Apago o derradeiro gole e bebo novamente. Bebo novamente, o derradeiro gole que inexistirá em minhas reminiscências. 
Minha mulher (Crucielle*) chegou da capital ontem de tardezinha – eu já estou aqui há um mês sozinho –, dessa vez, parece veio para ficar. Isso me assusta? Eu, livros, xadrez,  vinhos, jornais e mesa de jacarandá (ahhhssusta*). Esse vício de tentar entender a mim mesmo foi coisa daquele analista vulgar! Devia mesmo é só pedalar, andar... Mas é que de repente, o pensamento me vem e me paralisa. Ela está aqui e pronto. Devia ser assim. Não. Penso se isso me assusta ou não. Deve ser por isso que parei de escrever (escrevia antes?*). 
Pedi ao moço que cuida da fazenda para trazer todo dia um novo santo jornal e leite e comida, (que pouco come*). Pedi ao moço que trouxesse o jornal, que o jogasse por debaixo da porta (que a comida ficasse ao lado – que ele desse no pé*). Não queria ver o rosto do moço, não quero saber do nome do moço. Preciso escrever! Ver o moço ou saber o nome do moço poderia desviar a minha atenção do propósito de chegada aqui. Preciso de um romance. José e Fabiano não são moços. Agora, por exemplo, ele se tornou  o moço do jornal, e isso só me faz desviar o pensamento.
 Crucielle trouxe cá uns livros, os livros da minha biblioteca que ficara na cidade. Debaixo dos braços, vinhos, jornais e um novo tabuleiro de xadrez, que ela bem equilibrava naquele meio. Ela estava com a mesma roupa de quando a vi no aeroporto, de quando retornou à cidade? 
- As perguntas não me deixam escrever!
Crucielle aproximou-se e sinalizou para que eu a ajudasse. Mecanicamente, descarregamos um a um: vinho, jornal e tabuleiro. Eu os cheirei, e o deles nenhum odor. Os livros que recebi foram abertos e postos juntamente com os demais, em cima da mesa de jacarandá. Olhei a capa de todos e reli cada imagem contida nas capas dos livros que chegaram ontem. Os vinhos foram cuidadosamente alocados em recinto próprio. Antes, porém, li o rótulo de cada um (por isso não escreve*). Não bebi nem um gole, não queria me esquecer do último gole da bebida (e se lembrava disso*). Nenhuma bebida nenhuma leitura nenhuma problema de xadrez. 
Aqueles jornais que chegaram com minha esposa ficaram abertos, semiabertos na mesa. Eles foram expostos lado a lado com os jornais dos dias anteriores - até parecia algo planejado. Li a capa de todos os jornais que chegaram – o café está frio, Cruz, era como eu a chamava em tom jocosos. O objetivo de ler jornais deve ser o mesmo da existência, um passado presente, quase a imortalidade do dia anterior (a lembrança da última página do dia*).  
O café está frio, Cruz! Ela imediatamente passa um novo café. Bebo-o ainda quente e queimo a ponta da língua, e deixo de lembrar de como era antes de queimá-la. O café está quente, Cruz, inferno! Queimei a língua. Dá a língua pra mim, ela. Parece não se importar muito com a tal queimadura. A língua é para sentir o gosto que vou esquecer após o último gole (gole tragesquecido*). Ela é usada para esquecer o profeta morto na encruzilhada - a língua esquece do ser. Não só. Ela assassina o ser e a última palavra; é como uma máquina mortal que nos coloca de lado em função de suas artimanhas. Talvez, o latido dos cães seja língua viva, pois qualquer um recordaria do último latido. Como é mesmo o latido do cão, Cruz? Ela rapidamente reproduz: au-au. E percebo, sem tanta dificuldade: na língua dos cães não há esquecimento; é língua viva. Nesse mesmo sentido, o latim pode estar vivo, porque ninguém o esquece. Ele está na boca dos gramáticos, dos médicos, das plantas. Tá aí: 
- A escrita deve ser viva como o latim.
Devia escrever meu livro em latim... Devia começar com as expressões consagradas, mas que ninguém sabe exatamente como dizer, assim, ninguém as esqueceria. Haveria um personagem advogado, esses que vomitam  própria vida em expressões duvidosas. O advogado, que deveria ser meu protagonista, falaria várias expressões em latim, e, entre uma e outra, falaria uma expressão que ele mesmo teria inventado. Seria língua viva uma língua nascida morta: a língua criada pelo personagem inexistiria.
Um personagem assim seria como o cavaleiro inexistente de Calvino. Por que pensei nele, Calvino? Meu analista diria que é mais um desejo de grandeza, desejo de ser lido, de tornar-me um clássico. Numa daquelas sessões, ele chegou aventar que a minha paixão por Ítalo Calvino seria um misto de calvário e desejo de ser um autor clássico. Ele explicou do modo dele: calvário de Calvino, Clássico porque Ítalo Calvino já era um clássico. Hoje, pensando nisso, tenho uma vontade estranha de concordar com meu analista vulgar - eu só acrescentaria a vontade de estar entre os autores clássicos para Calvino.
- É por isso que não escrevo!
Eu me lembro de que deixei a porta do carro aberta no aeroporto. Queria muito chegar logo aqui. Saí correndo, o avião estava prestes a decolar – as portas do meu carro ficaram entreabertas. Havia entre mim e esse sítio, o checklist, que foi feito pelas cucuias. Suas portas estão sempre abertas, diria meu analista? 
Os quartos dessa casa têm portas abertas. Cruz, você chegou e não saiu da sala, notou os quartos? Só sala, cozinha, banheiro. Eu também não me interessei em conhecer o interior dos quartos, desde que aqui cheguei. Todos esses dias, eu dormi na sala, apesar das portas todas abertas. 
Também não conheci a varanda, sei que o vento vem de lá, vento forte. A vidraça que me separa da varanda está aberta, só um véu, a cortina, que me faz a separação. Todos os quartos dessa antiga casa, os sete quartos desse mausoléu estão abertos com uma fina película negra, cobrindo a imagem interior – o interior que não quero ver, não quero me esquecer –; o banheiro não tem divisória, não se preocupe. Caminho pelo corredor rumo ao banheiro, e vejo alguns quartos de portas entreabertas, apenas a cor preta tinge o olhar. Se em cada porta ficasse um jornal aberto, uma garrafa de vinho aberta, uma peça de xadrez e um livro, talvez fosse um convite para eu entrar; entrar e continuar sem escrever. Se em cada porta tivesse um pouquinho de Cruz, talvez simplesmente eu continuaria sem escrever.
Conduzi os jornais rumo às portas, deixando-os ali, quase que automaticamente. Já as garrafas de vinhos têm pernas e andam trôpegas às encruzilhadas – cada peão do xadrez, eu os deixei ao lado. Jornal, vinho e peão, eis os guardiões de cada porta-portal. Todos os caminhos estão embebecidos de vinho-cor-de-sangue, vigiado por um peão que haverá de ler jornais para tentar não se esquecer de algum passado recente.  Eles parecem à espera. Aliás, os corredores andam à espera: do quarto, do banheiro... O corredor é a parte da casa que sempre espera (talvez por isso nunca se esqueça*). Ele já  foi esquecido? Sim, na entrada de cada quarto deixei os três objetos (quase sacros!), e o corredor os assiste num silêncio sepulcral, esperando.

...

Muitos leitores já me disseram que gostariam de ter o nome em um de meus livros, eles me entregam todo o segredo, historietas até belas, algumas. Nunca escrevi um livro cujo título fosse meu próprio nome *o título Wilke não atrairia nem a mãe*. O que esperam meus leitores ao desejar o próprio nome nos livros? Abandonei a cidade fruto de tantas histórias, e não me sinto seguro aqui.
Os enredos da vida não se completam; não se encaixam em corpo nenhum. O editor queria um livro de contos, contos populares de primeira mão *uma coletânea*, que ninguém tivesse ouvido. Até mesmo quem os tivesse contado... Que só os tivessem confidenciado a mim. Eu queria um romance. Eu quero um romance. Não desses já escritos sobre coisas banais do cotidiano, quero um romance novo. O editor quer um livro de contos para rebater a tola crítica *a mesquinharia da crítica literária diz somente dos romances pastelões*. É só ver um escritor ganhando dinheiro com livros que a síndrome Joãozinho Trinta bate à porta. O editor quer que eu prove ao mundo das letras que sei escrever. O editor quer.
Meu sangue. Eu quero romance. Minha mulher chegou ontem: vinhos, xadrez, jornais e livros sobre a mesa de jacarandá (não senti falta do cheiro da buceta dela nesse último mês). O word continua pedindo bênção para escrever. Agora, todas as portas possuem uma peça de xadrez, um peão, um vidro de vinho aberto, jornais e livros. Os quartos estão cheios de mim; a cidade é um tédio nato (não me sinto bem aqui). Meu rosto ao espelho era tédio sem espanto. Esse novo ar, essa nova terra vermelha e essa mesa de jacarandá estão sem espanto, convivem comigo na tola harmonia insana do campo. Haverá aqui um novo tédio? Um tédio longe dos tédios das capitais. Um tédio sem gás carbônico e efeito estufa – um tédio sustentável. Os carros voavam por cima dos homens, que atropelavam os animais, nas cidades. Os carros atropelavam os animais, que eram humanos vestidos de terno de linho. A cidade esmaga tanto que é preciso ir ao interior à espera de histórias que sejam novas.
Que sejam novas mesmo repetidas por milhões de velhos gagás de trezentos anos. Que sejam novas mesmo em cidades velhas, de fósseis cadavéricos que engatinham para se locomover, beijam o chão a cada passo. O avião me trouxe para uma cidade maior, não me lembro do nome, e algumas pessoas já me aguardavam com o tom fúnebre do interior. Fui arremessado em um corcel no qual me conduziram a esse sítio. Os velhos já devem ter morrido, porque desde que cheguei aqui não vi nenhum, sequer saí da sala: sala-banheiro, sala-cozinha. Somente minha mulher entrou aqui, aqui, tudo encerra nesse tabuleiro montado aos moldes de Fischer.
Bob Fischer foi o maior de jogador de xadrez de toda a história, apesar da história oficial considerar Kasparov. Fischer é o maior jogador de xadrez de todos os tempos, apesar de já ter morrido e ter sido caçado pelo governo norte americano. Teria hoje... Não sei. Fischer morreu, mas o jogo desenvolvido por ele continua sendo jogado por todos os aprendizes de xadrez. Há um sorteio das peças da última linha, somente os peões continuam intactos. A torre fica onde o acaso mandar, o bispo, o cavalo, também. Fischer desenvolveu o xadrez, embora meu tabuleiro esteja ainda parado, o novo jogo de xadrez é extremamente dinâmico. Aqui, não há adversários *provavelmente não jogaria partida alguma, com nenhum adversário*.
Ainda meninote, observava os jogos dos outros, não me atrevia a mexer uma peça sequer. Várias pessoas já me perguntaram o porquê de não desafiar os outros. Preferia ver a beleza do xadrez pelas mãos dos mestres. Meus livros são partidas feitas por outrem *procurar imperfeição em partidas mestres pode ser um tanto desafiador*. Tenho uma fórmula eficaz para escrever um romance, o problema é que a crítica acaba dizendo que é romance pastelão. Nunca me disseram isso claramente, mas sinto que comentam. Não quero um romance pastelão. Quero um novo romance. Todos os meus livros é como um pastel gigante: cheio de massa e com pouco recheio.
Recheio é o que faz um livro não ser lido por muita gente. Recheio é o que faz o livro ser lido por poucos, que são considerados intelectuais. Meus quinze livros são todos cheios de palavras, as mesmas palavras e com os mesmos significados *todos os livros com ampla tiragem*. Meu editor, diante da fala do publicitário, disse que eu devia escrever um livro cult, um livro que deixasse a crítica deslocada. Coletar as histórias desse povoado *Santo Antônio de Goiás*, dessas pessoas que pouco mencionaram as suas histórias a outrem – seria uma forma de rebater os termos pejorativos que perpassam minha imagem.
Minha imagem pública é uma casa de sete quartos de portas abertas *a oitava é a porta de entrada*. Sete quartos com vinho, peças de xadrez, jornais e livros à porta e um cão que late lá fora, que ouço o renitente latido. Minha imagem é um sítio no interior, lugar de terra vermelha, onde um moço entrega jornais e traz leite todos os dias pela manhã. Minha imagem é a mesa de jacarandá. As portas abertas e o café frio  *o marcador do word aterroriza até o diabo*. Minha mulher silenciosa fazendo um novo café que ficará gelado, que será tragado fazendo cara feia. Minha imagem são quinze livros escritos de massa de pastel.
Pastel quente – vou ao banheiro, Amor. Não vou comer, não vou queimar minha boca. O pastel está cheio de recheio, pesado, enquanto meus livros são pastelões com pouca alternância de léxico. Se minha mulher escrevesse um livro, seria um livro de recheio, de receitas quentes e açucarada. Se minha mulher escrevesse-escrevesse o café matinal, o café quente que se torna frio diante de minhas mãos. O pastel que, mesmo frito na hora, se metamorfoseia em pão amanhecido diante de mim, diante das minhas mãos...
 Corpo, tudo. Tudo em mim é massa sem recheio. Meu corpo é gordo como uma bola de neve. Não há músculo para perfazer a silhueta, nem gordura propriamente dita. O que há é retenção de líquido. Meu corpo é inchado – inchado de quê? Meu corpo é inchado de massa de pastel que não é possível ingerir. Atrás de mim tem uma varanda de portas abertas e o vento, insistente, sacode os cabelos da cortina, mas prefiro apenas ouvir o chiado. Não vou olhar. Lá deve haver uma paisagem, que pode ser bela, mas que o nome é paisagem. E, como sei o nome, o que hei eu de fazer olhando algo que já sei soletrar? Paisagem é o vinho, o marcador do word, a mesa de jacarandá, os jornais, os livros e meu tabuleiro de xadrez aos moldes de Fischer *passagem*.
Xadrez já me é parte. Meu tio foi preso em um presídio de segurança máxima, porque comercializava tabuleiros de xadrez do exterior, comércio ilegal. Meu tio jogava xadrez por detrás das grades e vencia a todos. Enxadrista do caralho! Não tinha para ninguém. Será preciso ser o próprio livro para escrever uma obra minimamente original? Comercializar tabuleiros para vencer a todos? Só conhece o vinho quem o traz à boca, quem faz o vinho correr pelo palato mole, duro, língua, tudo. Só lê jornais quem quer ser notícia um dia. Vou dormir com um livro de cabeceira, um livro como aquele que quero escrever. Cadê?






Varanda-sem-jacarandá
 (Cap II)

        
– Maria, eu vou dormir aqui.
Na sala, mesa de jacarandá e colchão – vou dormir aqui. É colchão de solteiro, mas vai bem, vai bem. Durmo grosso como quem toma remédios. Sexo, não, hoje não. Estou um saco arremessado do décimo andar, um saco de pastelão que cai e espatifa ao chão.
Que sonhos dos diabos. Sonhei que do lado oposto, pela varanda, a cortina era aberta por um vulto. O vulto, que era algum diabo, queria me dizer alguma coisa, de onde viera *o diabo traz mensagens em códigos*. Eu não escutei nada, apesar daquele vulto ter gritado de minhas entranhas, de minhas costelas, de minhas vértebras. A coisa gritou, gritou como um grito vibrado em meu peito – eu fui gritado. Direto à alma, na alma. Uma flecha que sangra mesmo depois de acordar. Como hei de estar nessa manhã?
Arrastei-me rumo às cortinas. O vulto já tinha saído dali, sem dúvidas, sem remorso e gritando de mil palavras-entranhas. Encostei-me na renda de seda acariciando sem medo os cabelos de uma bela adormecida. Vagarosamente arredei as cortinas, começando a surgir cenas por detrás do véu. As cortinas são cabelos compridos que escondem os olhos da casa. Devo mesmo atravessar a cortina rumo à varanda *os sonhos podem permanecer mesmo depois de acordado, alguns sonhos lúcidos*. Os trilhos da cortina gemem a terrível existência do vulto que me perturbou em meu peito durante toda a noite. Aberta a cortina: disparei em cada batida cardíaca e avancei. Adiante. A varanda tem um mármore frio como o tabuleiro montado na mesma posição, como a mesa de jacarandá. A varanda varre o vulto e me arremessa além.
Uma vaca pasta sossegadamente. Um cachorro corre cem metros rasos atrás de um preá assustado. O capim chora orvalhos da madrugada. Não posso ver nada. Não posso distinguir o que há além da varanda. Sem exatidão nas palavras, senti o obscuro passar com o arrepio d’alma *como o vulto noturno*. Ali não há paisagem. Senti um quê sem palavras que esfria o abdome, o corpo, a amplidão. A amplidão que me tomou todo o grito sem palavras da silhueta noturna.
Hoje, não quero café-quente-gelado-morno. Ninguém, nem mesmo os cães seriam capazes de me retirar desse torpor. Ao longe, ao longe, ao longe. Nada.
Sofreguidão nas palavras nasce para atormentar a alma vã. Não há como dizer o que é a palavra. Palavra nenhuma traduziria o instante, a palavra do instante é inexistente, apalavra. Nem o silêncio daria conta desse choro universal. O choro da varanda-sem-palavras.
                                                                                                                                                   
...

As palavras são guardiãs da lei *dizia a professora de português da sexta-feira*. A lei do existir. Queria adormecer nesse instante-sem-palavras. Queria não mais dizer de romances. Não queria desdizer meus romances. O Pior de tudo é pensar: pensar é abrir mão das entranhas, tudo. Queria não pensar agora e permanecer eternamente nessa bolha-sem-nome; não quero tentar traduzir o instante. Que seja por um segundo, esse instante sensitivo da varanda; o vento que arroja o oco da varanda é parte disso que não sei nomear. Disso que faz procurar palavras, palavras que acorrentarão meu silêncio.
Um barulho. Alguém esbarrou no tabuleiro de xadrez e as peças brra-brro-brr ao chão. O som estridente das peças contra o solo me faz retornar ao café frio e a mesa de jacarandá. O silêncio universal foi calado pelo grito das peças de xadrez *um grifo de sanidade em quem estava absorto no prazer sensitivo*. O universo mágico me observa pelas costas, enquanto, de quatro patas, recolho peça a peça, pata a pata, meus pedaços do chão.
Qual era a posição do tabuleiro antes da queda? Era a desordem de Fischer?  Apesar de eu não possuir o hábito de jogar contra adversários reais, eu busquei aprimorar o meu jogo me desafiando. Na verdade, defendi de mim mesmo com a melhor das defesas desenvolvidas, o dragão da siciliana *assim ficará o tabuleiro agora*. Contra as minhas aleatórias ofensivas, somente o dragão. A posição das peças era a de Fischer e, contra essa desordem, só o dragão. Dizem que esse nome “dragão” advém de uma constelação específica que teria o formato do animal. Não, a história oficial é feita para ser desdita. “Dragão”, no meu desdizer, é fruto do bispo em fianqueto sobre o resguardo do cavalo. A saída do cavalo deixa transparecer o fogo cruzado do bispo. A língua só pode mover-se na boca como fruto do bangue-bangue ocasionado pelo bispo em fianqueto, as línguas como um xadrez em jogo.
Procuro as palavras, embora não as queira. Procuro a posição certa e remonto o tabuleiro, agora, as negras de siciliana e as brancas a partir de Fisher, aleatoriamente. As negras, minha defesa, estão de agora em diante de siciliana, dragão da siciliana *não estava assim antes da queda*. O café. O café da garrafa pulou à minha xícara, que soltou à minha boca, que queimou minha língua, a ponta da língua, fazendo de mortas algumas células. Café quente queima como o vulto que arrasa a alma sem razão. O café esfriou. Bebi frio e reclamei do café que estava frio. Café frio derruba todas as peças do tabuleiro interior. Por um segundo não pensei no arriscado café cheio de borra e gelado, senti o peso da alma, o silêncio do deserto, o deserto noturno do vulto. O deserto real. Soturno. Não há o que o defina, nem a hora certa a chegar, o vulto comparece fora do tempo, da razão. Palavras não definem sequer um terço desse silêncio real.
 – Nega, estou tocando em algum ponto branco, branco-branco! Nega, quero sua presença, que basta. Nega, o café açucarado, cheio de borra e gelado é tudo que tenho agora. Não vou deixar as palavras gritarem mais alto que meu silêncio, o silêncio de todos: barulho não escutado. Nega, acho que estou em silêncio. 
Não. Não estou em silêncio, penso, e pensar é falar sozinho. Quando tinha quatro anos, eu descobri que pensar é falar sozinho. Pensar é se acompanhar. Pensar é ordenar o real para tentar suportar o silêncio interior. 
– Maria, eu ainda não estou em silêncio.
– Deita um pouco, Wilke, vai. 
As palavras não sou eu, sou o próprio instante do desdizer. As palavras ditas são capazes de traduzir-me em algo que não sou: palavras, uma falsidade quase necessária. Deitado, sentado ou de pé. Sou onde não há o que dizer. Sou o silêncio universal: a fala hermética do vulto, que grita em silêncio e quebranta todo coração vazio de recheio. Silêncio: mais que mil palavras inquietam o disperso coração, não, somente no sonhorreal do vulto me refaz nesse tabuleiro.


...


Os quartos dessa casa velha estão fechados de portas abertas *a encruzilhada abre caminhos, e Exu é que une a matéria ao imaterial*. O quarto não está fechado, há portas abertas. O peão protege, mas impede que eu veja além da película negra. Quando olhei há pouco as cortinas, não via o que estava do outro lado. Ora o pano mexia, ora fechava-se. Eu via parte do que estava do lado oposto, mas pensava que fosse paisagem o que era amplidão *passagem*. Pensar em paisagem é trair-me; era ver todos aqueles quebra-cabeças da infância – juntando, formava uma paisagem de mil peças, lembra? Papai trazia jogos e jogos, enquanto eu quebrava a cabeça. A paisagem é quebradiça como neurônios que jamais se tocam. Mesmo em sinapses, os neurônios são paisagens, peças que não se beijam. A varanda é o oposto. Não é paisagem, muito menos neurônio, a varanda-sem-palavras.
O tabuleiro de xadrez agora tem uma defesa, o dragão da siciliana. Antes do tabuleiro ir ao chão, eu estava todo à lá Bobby Fischer, um sorteio de cada lado, e os peões da segunda linha intactos. Agora, as brancas continuam aleatórias, embora as negras estejam alinhadas com o bispo em fianqueto, conforme ordena o dragão. Dizem que essa defesa é chamada de dragão por ter semelhança a um composto estrelar, uma constelação. Particularmente, esse nome é interessante não pela constelação, mas pelo fogo aberto ao se retirar o cavalo *a velha boca aberta*. A saída do cavalo vem como o vulto noturno, que chamam de sonho, que arrasa um homem mesmo acordado, que chamam delírio. Assusta. Assusta e proclama o fogo cruzado. Eu acho que já vi esse vulto outrora, mas acordado, não me recordo bem. Todavia, o arrancar de minhas vértebras, a passagem pelas entranhas (isso que fui gritado) – eu já presenciei coisa parecida aos seis ou sete.
A encruzilhada abre caminhos. 
– Nega, meu amor, esses quartos estão abertos. Quando cheguei, as portas estavam escancaradas, assim como eu as deixei, mas lá dentro havia uma película fina de cor preta, dentro de cada quarto. Estava fechado. O peão lê jornais e livros velhos, regado a vinho. O peão abre caminhos. Eu os coloquei assim, Nega. O peão abre a película negra rumo ao acaso da varanda. O peão não precisa de palavras, pois que já habita o silêncio universal. No xadrez, a qualquer momento, o peão é capturado para dar passagem a outras peças mais potentes. O peão abre caminhos. O peão é o Exu do xadrez e do quarto, que agora está aberto, minha proteção, portanto.
 Meu tabuleiro tem as peças negras contra o vulto, que é de jacarandá e palavras. As palavras berradas no sonho eram tão intensas que ouvi o branco *o sonho era branco, o vulto era branco-gelo*. Meu peito não suportaria outro grito, o grito surdo do vulto, por isso a siciliana é a minha melhor defesa. À noite, os peões abrem caminhos, enquanto o dragão prepara-se ao sopro do inferno. De onde vem essa coisa de São Jorge e dragão? Pode ser mais um desdizer da defesa siciliana, porque o fogo do dragão só aparece quando o cavalo desloca. As palavras vultosas são ensurdecedoras, contudo, após ouvi-las, não há distinção de cada fonema. A varanda não tem fonemas, não forma morfemas, muito menos palavras. No som da varanda não há texto: a sintaxe e a semântica são iguais a zero *Inicialmente o esquecimento, apagamento de qualquer reminiscência, após, um salto, uma invenção*.
A varanda não é um número e nem encerra uma palavra. Zero é nada, é um interstício, um intervalo entre a sala de jacarandá e o restante da casa. A varanda não conclui, não finaliza a casa. Ponto do meio, um meio que há sempre outro entre ele. A varanda está entre, um meio entre os demais. Não há começo, nem meio exatamente, não encerra o fim.
Preciso descobrir esses quartos, todavia, enquanto necessitar especificamente de algo, algo será ausente de mim *o essencial é aquilo que ainda não há*. Preciso dos quartos da mesma forma que exijo dos jornais uma notícia vermelha, mas queria tudo como o que vivi na varanda – impossível. A varanda é o que há independente de qualquer um; sou eu (dos outros) em mim. Os quartos, enquanto externos, enquanto objetos puros, não trazem nada além de quartos. Os percevejos, as aranhas, serão aranhas que dirão tudo diante das palavras: p-e-r-c-e-v-e-j-o/a-r-a-n-h-a. Os nomes são peças de um alfabeto morto, uma língua morta como as células que morrem ao tomar café quente e açucarado (prefiro café gelado e com menos açúcar), porque o esquecimento é a marca registrada de quem morre. Não existe relembrar: relembrar é sempre *sempre!* uma língua de novo. A morte é que nos arremata de supetão para impor uma nova vida, uma nova vida que é tudo bulhufas de vidas de outros. A morte não se impõe aos mortos, uma vez que ainda não foi esquecida – talvez só o ato de morrer seja vida, vida por excelência. A morte é o instante do grito do vulto que arrasou meu peito; a varanda é a vista sem palavras, que nem jacarandá na floresta. Não quero os quartos, ainda preciso deles.
Esse tabuleiro é uma arma. Os jornais que chegaram são armaduras contra a intromissão do vazio. Ler as notícias me deixa ligado, interligado, com um início e meio e fim – fim que não existe. Fim: uma palavra sem existência como todas essas palavras temidas coletivamente. Mas saí da cidade, da capital, para me ocupar do silêncio propiciado pelo retorcer do cerrado. Essas árvores daqui são pinturas barrocas naturais e deveriam me tragar daqui. As árvores do cerrado me fizeram repetir a mesma incompetência da capital *o cerrado tem árvores do ponto do meio*.
A varanda-sem-palavras foi a experiência necessária para que eu pudesse dizer da falta de necessitar de algo especificamente: precisar algo é chegar a um ponto final *para afastar em seguida*. A necessidade é o oposto da vida-sem-palavras da varanda, está dito! O vento é o que nos toma por completo, o vento de outro lugar também sem palavras, da paixão. Vou dizer ao contrário: não preciso de um novo romance. O contrário de novo, ou seja, velho, então, dizendo ao avesso – preciso de um velho romance de novo. Ainda as palavras estão intermediando o inexprimível *pura futilidade*. Não preciso de um velho romance. As palavras são correntes que aprisionam a alma. A prisão que meu tio se submeteu por contrabandear tabuleiros importados foi à consagração dele como enxadrista. Um bom enxadrista, excelente *ideal, ideal de enxadrista*. As palavras devem ser correntes que aprisionam a alma para libertá-la. Os jornais abertos estão do lado de lá; os livros, ainda que de capas lindas, estão do lado oposto *a repetição demarcar o inominável, não?*. A varanda continua no mesmo lugar, mas não irei a ela, porque tudo seria palavra do desdizer. Se eu disser palavras, as coisas serão palavras e só. Só haverá varanda-sem-palavra se eu não estiver ao alcance dela – somente não dizendo é que as coisas se tornam, tornarão, sem virar ao avesso, sem tornar excesso.
- Nega, queria falar com você. 
Do querer: – a fala recusa traduções. Do desejo, o oposto advém. Não vou dizer o contrário. Não vou dizer! Digo somente quando me recuso a dizer, e, é mesmo na recusa que comparece o que iria a ser. Enfim melhor seria dizer – digo NADA, um desdizer. Digo nada como quem diz algo que é nada; a recusa está no presente; a ausência é nítida e não digo o contrário. Não digo o contrário, já que o que digo já é o avesso da linguagem: digo NADA. Só há linguagem quando NADA diz além.
– Que tal você voltar à capital, Maria? Sim, você vai e eu continuo nessa casa *causa*. Você vai e eu fico aqui, ainda com a necessidade da sua presença, com certeza; os objetos ainda externos (xadrez, jornais, vinho, jacarandá) são seus dedos fora da mão, são! Mãos sujas de dedos colados à mão.





Amor-de-palavras
(Cap. III)




Maria saiu dessa casa velha em prantos. Mas o que disse eu? Apenas para ela ir à cidade, afinal, ficar aqui comigo deve ser insuportável. Insuportável. Ela chorou e não gosto de ver lágrimas cristais, causam arrepios intoleráveis. Quando me despedi dela, no aeroporto, ela não chorou – isso me confortou para passar esse mês à sós. Não quero chorar também. Sangrar alguém para lidar com o próprio mal-estar é de profundo mal gosto.
Sangrar em lágrimas porque Maria partiu. Partiu o espaço cinza que nos unia *o café não será frio, nem quente*. O avião nessa hora decola para dizer adeus ao Deus de nós, que é. Há entre mim e ela um nó de peito, mas ela me permanece enxuta no varal do tempo, tempo meu.
O café que tomaria agora, nesse fim de tarde, seria feito por ela. Não há sequer o olhar dela perante minhas pernas insossas, que não param de mexer inquietas. Do olhar: meus olhos querem sangrar como aqueles olhos, por-mim-por-ela. 
Esse peito que geme o vulto do grito, o silêncio, a varanda *não chora palavras*. Quando ela saiu, lágrimas caíram. Meus olhos silenciaram, mas em minha costela opera um quê sem razão, desmedido de vulto. A razão lançou-se adiante – fico na inquietude tomando notas de olhos alheios, olhos meus também.
Eram olhos alheios, dois, que eram meus. Não tinham a cor dos meus, nem sei se tinham cor. Eu estava do lado de fora, minhas retinas não refletiam um centavo. As palavras intervêm nas lembranças, inscrevem lembranças em epitáfios de vivos. Dos olhos, uma cor: a amplidão parece atravessar as costelas. A cor será. Um dia, vou ter sangue, corpo, costelas. Um dia, sentirei coisas sem-nome-sem-palavras, e Maria voltará na surpresa do acaso. Eu quero. Enquanto o querer é um desejo, será um quando sem culpa.
Queria poder sentir um novo amor. Um novo romance. Quero um novo amor, que sangre sem avisar. Que arrase minhas vértebras, arranque minha costela, que faça uma nova mulher. Mas ainda quero – se quero é porque não sou. Um quando, que será a vez num instante, mas é futuro. Um quando, que não permitirá um querer, porém, serei todo, todo amor. Sem quando, tudo será o próprio instante da beleza *o futuro é desabitado, o hall do que não há*.
Não há amor quando o desejo é marca indelével. Um pai devia ensinar isso aos filhos - meu pai sabia bem disso, embora não tenha atrevido a tecer comentário nenhum sobre o desejo. O desejo demarcava o espaço do meio na minha casa, entre o que sentia e um quê de propriamente dito. Amar é toda excomunhão sem motivo. É permitir o proibido a quem já ultrapassou a barreira do “não”. O amor é o que não tive *o amor é um quê do que não há*.
Eu dizia a ela, Maria, que a amava. Eu reclamava do café como quem diz que quer amar novamente. Nosso amor estava um café morno, um dia cinza, porque era todo palavras. As letras dos jornais, dos romances, eram o nosso melhor, um amor empalhado numa mesa de jacarandá. Meu amor era um tabuleiro montado aos moldes de Fisher, peças aleatórias sem história *um animal virtual*. Eu salvava o amor bebendo o café já frio; lendo as capas dos jornais. De quando em vez, bebia o café quente, no gosto das células mortas eu refazia um novo momento, meu novo romance. Eu alimentava a boca terrível do amor com tudo isso: xadrez de Fisher, jornais, livros, café e a mesa de jacarandá. Meu amor foi alimentado por palavras. Amor é intraduzível *o fracasso das letras sem plateia*.
O xadrez de Fisher não é xadrez; é o amor de Robert James Fischer, o "Bobby". Esse grande campeão mundial, um gênio da história do xadrez, além de conhecer a fundo as aberturas tradicionais, desenvolveu um novo xadrez em que as posições das peças eram dispostas através de sorteio, era o amor de Fischer *aposta diária sem razão*. Somente os peões ficavam na segunda e sétima linhas, o restante era via sorteio. Fiz da minha vida um perpétuo desejo de amar *um empate perpétuo, repetição de três lances*. Minha mulher voltou à capital.
Em cada porta, um peão. O peão saiu da linha de frente do xadrez e ficou à espreita, à porta, tal como Exu na encruzilhada. O peão não protege o quarto, mas abre caminhos, liga minha matéria ao imaterial do quarto diante de um portal imenso, que me conduz à película negra do interior do quarto. Ainda há pouco, coloquei mais um peão na porta de entrada. Já são oito peões: sete nas portas abertas de cada quarto e um na porta de entrada – abra os caminhos da varanda (o banheiro daqui não tem portas). Letras me perseguem. Não é a Nega, não é o xadrez de Fisher ou jornais e livros e vinhos, mas, tão somente, as palavras. Elas estão em todos os lugares e não precisam de Exu para abrir caminhos. As palavras fecham os caminhos, diante delas não existe portal algum.
Quando pequeninote, eu não entendia bem a língua portuguesa. A compensação resume minha vida: minha família compensou a carência de palavras pela via do excesso. Estudei pelo método japonês de aprendizagem, Método Kumom, e trago de lá a disciplina de quem escreve seis horas seguidas, seis horas de tudo que não tem a ver com a própria existência. Os métodos ensinam a afastar-se da própria existência. Lia como um condenado pelas letras – escrevi quinze livros para tentar abortar o excesso de mim, contudo, abortei a mim a mesmo. Lia, escrevia, mas permaneci escravo do dito.
A palavra amor me deteve por vários anos. Xadrez de Fischer, mulher, jornal, livro, café. Aprendi não a jogar xadrez, mas o xadrez das palavras, uma tranca *Exu*. Não jogo xadrez com adversário reais, porque os oponentes não entendem a crueldade das palavras. Talvez eu não ame de fato, já que dizer “amor” já reduz o fato ao impossível. O desdito é o que há.


...


Sair da capital rumo ao interior não são promessas, mas um pedido *uma aposta*. Saí da cidade sem saber o que me esperava no escuro, a penumbra dessa casa é tão terrível quanto habitar esse corpo pastelão, quanto escrever quinze livros torpes. Se o soubesse como era viver aqui, talvez, tivesse continuado escrevendo romances pastelões dentro da minha casa. Sair da grandeza da cidade, da masturbação que é viver sendo elogiado, e entrar no marasmo de uma casa escura, sem café, sem ninguém, apenas o vulto da noite, a tenebrosa e pacata noite. Ao marasmo infernal desse lugar, sem a obrigação de estar aqui, mas permanecer longe da correria insana do dia-a-dia. É o oposto. Quando o oposto se presentifica é um tanto desolador *a crueldade do óbvio*.
Estive puro na palavra ‘elogio’. Eu me resumia na palavra esquecimento – esquecer-me dos elogios que me eram feitos. Sair da minha casa, casa de condomínio de luxo, foi um atravessamento. Não foi através da palavra que cheguei aqui (esses pensamentos estão me consumindo). Estive em palavras, do meu nascimento à vida adulta. Na verdade, nunca cheguei à vida adulta, porque havia uma palavra (várias palavras) me separando da experiência. A experiência esteve subjugada ao dito, previsto.
A previsão é um estado de coisas que possivelmente não chegará a ser. Fui um desejo esdrúxulo de sucesso. Era desejo de. Isso é grande agora. Não há formas para dizer que eu não era um desdizer que repetia do intraduzível. Pecado. É um tropeço fazer da fantasia uma vida, uma atrocidade. Fui atroz comigo. Mas ainda o sou, porque digo que fui. Ah, eu separo meu passado do presente. Eu sou atroz comigo. Serei honesto o dia em que não disser o que sou – serei.
 Maldição. Sou todo amaldiçoado. Não há vida alguma em quem diz alguma coisa. Não quero dizer, não quero falar. Pois as lágrimas de palavras são frutos de expectativas, carne sem tempero. Eu desço aos trilhos do caos. Direi sim, um dia, mas preciso de um NÃO forte, capaz de romper com esse ostracismo. Essa casa, ao inverso do condomínio, é meu não.
É, Nega. Maria, não há nada em você agora que cause identificação. Nem eu mesmo consigo me identificar com essa história. Ela estará em outro lugar (terá esquecido minha última palavra), entretanto, ela pertence ao além da palavra pensada. Então, o problema não são as palavras, são os pensamentos que se inscrevem através delas. Jamais. As palavras são expectativas frustradas de um passado presente.
Maria estará fisicamente em qualquer lugar, mas certamente os atos a convocam como no instante que a conheci. Numa premiação havia alguém que havia lido toda minha escritura. “Uma retardada!”, pensei. Com o tempo, entretanto, passei a encontrá-la em diversos espaços *poucos frequentados*. Ela será então isso que não é, meus livros. Porque desdizendo ela parece presentificar. Ela é porque nada diz. 
Parece que minha mente desmente tudo que eu penso. Eu estou sem saber, mas considero o contraditório. Esses quartos, sete quartos, no sétimo dia de descansar. Mas haverá um oitavo. O sétimo preanuncia o oitavo. Ei, eu não quero pensar. Eu não sou tolo de desejar um fio sequer. É maldição. MALDIÇÃO. Eu sei que haverá um sétimo, um oitavo, e aguardo como quem morre a cada fim de dia - a terra foi criada em seis ou sete dias? Um dia, uma morte, uma noite, uma vida sem fim. É perturbador saber que um novo dia está por vir. Tomo nota. Desminto meu dizer. Há algo além. Algo nisso tudo.
.O que houve, portanto? O xadrez já me é um passado alheio. Os jornais estão na mesma página (imagino eu), já que não vejo letra alguma, permanece distante. E, ainda, os livros estão na mesma casa maldita, essa casa de fazenda. O livro deve ter seu brilho de varanda no além da palavra, além da consolidação do significado da palavra. Esse livro maldito tem um mal no dizer, que deve ser nada, apenas uma tola indisposição que agora me abate. Nada, furo universal. É espelho refratado em outro espelho.
As cortinas estão cada vez mais abertas, não perfazem um véu pela vidraça e o romance está descortinando. Viver é um descortinando *na bíblia consta a passagem do véu espatifado, Velho Testamento*.
Mamãe brincava comigo de bem-me-quer. Ela quis meu bem: ansiosa, desejosa de um filho que a tirasse da mesmice da vida de esposa. Era a hora de ela se ver no espelho, uma menina que não fui. Eu seria uma menina. Uma moça bonita que usaria laços de fita e transaria escondida, atrás da igreja. Eu seria a expectativa dela *o outro dela*. Eis-me! Sou o furo de um desejo. Mas mesmo diante de minha severa virilidade, uma mãe me prefigura. E eu digo isso agora. Digo, porque é tudo o que me resta. São esses pensamentos que me consomem: tudo que sou. Não, serei meu próprio não dizer, quando a necessidade falecer na esquina debaixo. É no devir que o outro se desmancha. Minha fique com a filha que não teve... Que vá às cucuias!





Um-quarto-a-mais
(Cap. IV) 




Se fosse uma questão de ritualizar a vida, eu já teria adentrado os quartos, cada qual um ritual, mas não é tão simples assim. Eu ainda não entrei em quarto algum por motivos escusos, que não cabem palavras. Nem tudo exige explicação; nem a mais bela pintura é capaz de traduzir o incognoscível. E não me tome como insensível. Claro que é um ciclo de vida como nascer, crescer e morrer: sala e cozinha e banheiro. A vida é mais, sempre um-a-mais. O ritual da vida trapaceia a existência, um sorriso, uma piada diante da seriedade. A passagem pela proposta do ritual, a mudança através do ritual, não reproduz a vida, a existência. Ritualizar é fazer símbolos de palavras – evitar o sentir, a vivacidade do devir.
Ainda não passei pelo ritual da vida. Fiz da vida símbolos que eram rituais obrigatórios. Eu passei pelo ritual da vida, porém não vi nada e botei palavras para não lembrar nada. Até mesmo as palavras que foram usadas para esconder a vida, eu as esqueci, as últimas sempre foram esquecidas. Eu falo e não entendo. Eu passo pelo ritual de passagem, a passagem ao nada. O quarto ao lado é por onde começarei. Se ainda não entrei no quarto (se deixei um peão, um vidro de vinho e um jornal), talvez seja porque eu quis atribuir aos objetos o que não entendo, um pouco do meu corpo. O ritual de passagem é a limitação de minhas percepções.
Quando penso nos rituais, primeira namorada, primeiro emprego, primeiro porre *primeira buceta*... Não me vejo em nada. Ritual? Eu não passei por nenhum. Eu me esquivei de tudo que me fizesse adulto, maduro, eu me esquivei dos últimos capítulos. Releguei a vida a algo que botasse palavras-cobertor.
A varanda não foi traduzida, mas uma dor imensa me faz querer botar um símbolo. Começa a sangrar um peito sem lágrimas – Maria foi embora. Eu sempre a usava para desabafar essas coisas sem nome. Ficará o peito gemendo como portão velho. Não há palavras que traduza a dor suave do peito, nenhuma garantia. Esse corpo pagão diz dos limites prefigurados. 
– Caralho, cadê as pastilhas? Hidróxido do cacete. Meu estômago dói, caralho. 

...

Esse quarto será também tudo que não vi, não deixarei a película negra do quarto perturbar meu sono através de vultos. Mas o vulto foi o melhor de minhas costelas, de minhas entranhas. O vulto me resgatou ao inominável da varanda (desde que aqui cheguei, foi a única coisa pertinente que me ocorreu).
Fui ao primeiro quarto e cheirei o gosto sombrio. Atrevi, e meus pés adentraram o quarto, um cheiro de amor esquecido, velho. Não há luz, pensei que fosse branca a cor do amor, que tivesse um lugar para acender a luz – nada. Meus pés deslizam pelo interior do quarto, escuridão delicada. Uma cama para o sono, um armário, uma pintura, um quadro – nenhum objeto que desvie a sutileza do espaço escuro.
Um quarto de ausência de palavras. Maria está como quem é todo esse espaço. Ela está como uma bolha que perfaz toda a minha silhueta. 
Não há objeto algum dentro do quarto. Ele não tem nada a oferecer, mas é tão confortável deslizar a cada centímetro. O escuro é meu sono sem vulto. Todo vulto, toda imagem desfigurada deve ser isso que cheir’amor. Vou deitar aqui.





Uma-questão-a-menos  (apresentação)
 (Cap. V)

            Dormir nesse quarto-sem-sonhos foi regurgitar velhos problemas. Cheguei aqui na dinâmica de escrever aquele livro do editor, em forma de um romance histórico. Coletar historietas desse povo daqui seria até interessante, mas para jornalista. Minha resistência é ficar aqui. *Explorar cada centímetro do quarto, da sala, do banheiro, da mesa de Jacarandá, do xadrez, dos jornais é explorar tudo que não é varanda. Meu problema parece ficar mais claro, o que me cria mais problemas*.
Se eu continuasse desconhecendo meu engatinhar, talvez, estivesse mais próximo do que busco. Não quero o livro do editor, meu dilema parece estar um andar e-mail. Parece mesmo que quanto mais tento me aproximar, mais distante torno. A questão é não conseguir dizer o que quero. Recordo-me de um verso de algum autor desconhecido, que dizia: "Só ama profundamente quem desconhece o amor". Talvez por isso até agora só desdigo numa produção insana. Não quero as palavras, os quartos, a casa. Nesse momento toda forma de enunciação concentra-se na varanda. E a varanda não é resumida em linhas (poucas ou muitas), não há mesmo forma alguma de atingi-la. E é isso que me convoca; é isso que me faz rasgar-me ao meio em busco de outro corpo que ultrapasse as palavras. Quando eu era pequenino, uma professora (dessas imbecis que acreditam no poder do léxico) disse que meu problema era a falta da palavra certa. Essa professora diagnosticou meu problema como “falta constante de palavras”. Nenhuma imbecilidade maior.
Minha infância foi repleta de diagnósticos. *Quanto maior o número de diagnósticos, mais se distanciava desse quê*. Foi tentando me compreender que fui levado ao psiquiatra ainda aos oito anos. Ele disse à minha mãe que meu sofrimento chamava-se depressão e, ainda, voltou-se especialmente a mim para dizer que o apelido disso era 'ansiedade'. Eu era ansioso. Descoberta. Ansiedade-por-falta-de-palavras, disse mamãe. Minha mãe tinha também um quê de burrice, porque sempre fazia disso meu rumo. A verdade da infância é que a criança não existe um centímetro sequer. E fui estudar línguas. Estudei o quanto pude à procura do que fosse lá o que fosse - línguas dos diabos! Era a cura desse mutismo. Cem línguas e nenhuma solução. *Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não uma solução*. A mania da genialidade também assolou minha porta. Hoje não entro em quarto nenhum. Entrei nesse quarto (o primeiro) e meu problema não foi resolvido, talvez ampliado. Quando fui ao psicólogo, ele me disse que tudo seria logo-logo resolvido. Um ano e nada. Não fiquei ouvindo as baboseiras daquele que me trazia a maneira certa de viver. Para ele, o problema já não era a falta de palavras, muito menos se chamava depressão. Meu problema seria denominado “repressão”. Esse idiota queria (insistia) que eu dissesse o que não sabia. Ele queria a todo custo que eu falasse do que me perturbava. 
O problema básico da minha infância era que nada me perturbava – fazendo com que tudo se misturasse nas minhas decisões. A falta específica do que reclamar (reclamavam por mim) me colocava em situação à lá Fischer, na completa desordem. Minhas peças não tinham um lugar certo para amanhecer. Meu café, desde cedo, era gelado, quente, morno (açucarado). Hoje, somente agora, prefiro o café gelado. Talvez a questão tenha sido a falta de elaboração. Fiz Letras, um curso que ensina a como não ser escritor. Fiz o curso de Letras para aprender a dar nome ao que não sentia. Persigo essa palavra que nunca vi. Os textos, os livros, todos os livros que escrevi não há nada além de uma visita ao quarto, uma ida ao banheiro. Nenhum traz a marca da varanda, o ponto do meio, no interstício de um novo ponto. Nada me convoca e, por isso mesmo, fico preso a essas bugigangas inúteis. Amarrado à mesa de Jacarandá.
Essa vida até agora foi uma vida de várias mulheres, de vários cheiros. Sempre gostei de cheirar as bucetas de minhas mulheres. A mulher que mandei embora cheirava branco-gelo. Mas já cheirei uma azul-maça-sutil, que me deixou num desses estados de torpor (acabei dando um nome porque me esqueci completamente do odor). Incrível é que toda vez que me vejo com um cheiro diferente  *os cheiros substituem nomes?*, eu me desfaleço, procuro cama. Eu procuro as peças quando a posição do tabuleiro parece insolúvel. Eu procuro um novo cheiro quando uma buceta tem um novo odor. Eu procuro palavras e deixo a verossimilhança para os críticos. Quando o gosto do vinho some (sempre sempre some), eu sugo atroz as palavras e defino o que senti. Não sinto nada depois de uma tragada de vinho. As bucetas existem para por um ponto onde não há lembranças. Pode ser. Pode ser que enquanto se lembre, não seja mesmo possível escrever uma linha sequer. Talvez por isso todo livro que escrevi tenha ficado borrado, porque escrevi lembrando passo a passo, planejamento otimizado do início ao final. Se o que há aqui fosse um livro, não seria possível saber se haveria de ter um desfecho. É isso que no desdizer procuro sem busca alguma. Porque falar de vinho, de cores, de xadrez, de família, de bucetas... 
Falar de tudo que se lembra é de profunda idiotice. Exatamente por isso que não desmancho meu tabuleiro. É por isso que me revolto quando cedo à inconstante fome de vida e bebo o líquido. Eu sempre sucumbo no final do vinho. Odeio o vinho quando o engulo. O vinho não foi feito para ser engolido. As uvas líquidas são mesmo para viverem de um lado ao outro da boca. Certa vez resolvi praticar uma grande heresia: bebi vinho na frente dos amigos de uma de minhas mulheres * Era Periquita*. Tomei de um gole, já que estava numa incompreensão total perto de tamanha tolice. Os amigos de minhas mulheres são profundamente idiotas. Nenhum soube ouvir a língua dos cães, e todos, sem exceção, falam línguas mortas obsessivamente. Minha heresia não foi submeter a minha presença aos tolos, mas, tão somente, beber o vinho como bebiam os amigos de minha mulher.




...

Meu nome é Marques Wilke Devívido. Não tem "Santos". Sempre achei de profundo mau gosto chamar qualquer coisa dos Santos. Eu, ao contrário, chamaria Marques da Mãe, Marques dos Livros, Marques Xadrez, Marques do Caralho. Sair de casa não é problema – resolvo problemas de mortais, como, bebo, fumo e cago, embora prefira ficar em casa mesmo. Entretanto, se eu fosse dar um nome para meus problemas (o que não faço sem hesitação), chamaria de véu. O véu da cortina que me separa da varanda. Os quartos não me perturbam um milímetro. Os quartos (os sete) tem toda uma maneira própria de me olhar. O cheiro deles mistura constantemente à cor sombria que perpassa as portas. E não me assusta.
Sobre a varanda-do-meio prefiro não dizer prontamente o que passa ali porque não paro de pensar nela. Ontem quando abri o véu da cortina e pisei naquele lugar eu não sei mesmo o que havia além-aquém *amém*. Eu não tinha ideia e não tinha palavra. Quando o vulto me visitou na noite antepassada, eu não vi palavra alguma. Meu desdizer vai num rumo de não querer explicar o que passa no reino desabitado. "Reino desabitado" foi posto em um livro de contos que escrevi, embora ali não tivesse nada a ver com as experiências sensitivas. Deve ser mesmo diante da falta de lembrança que a palavra comparece para dizer alguma coisa daquilo que não se diz. Mas quando se lembra do que aconteceu, uma lembrança de fato corporal, aí, sim, as palavras devem são engolidas pelo soturno. Na varanda, eu era visto. Eu era visto do meu corpo para lá. O cão que corria atrás do preá, corria também um olhar à varanda. O preá corria e me era visto. Eu ainda não disse nada, porque tentei dizer demais. Eu sou dito quando sou visto visão além.

...

Vamos lá: até agora o que sei é que me chamam de Marques Devívido *constantemente omitem o "Wilke"*. Escrevo livros para a editora e preciso coletar histórias desse povoado, Santo Antônio de Goiás. Sou para lá de prolixo * esses pensamentos se movimentam de lá-pra-cá*; sou casado há quinze anos com a mesma mulher cujo nome é Maria (engraçado, não decorei o nome completo dela). Simplesmente gosto de Fisher e adoro a defesa dragão da siciliana. Não jogo xadrez com ninguém vivo, mas me desafio a cada momento analisando *jogando* contra as partidas clássicas. Gosto de vinho enquanto está na boca e odeio o vinho quando sucumbo – quando o bebo. Estou há um mês nesse sítio e até agora só entrei em um quarto. Tive um sonho com vultos e não tenho medo dele *os vultos hiperbolizam a própria imaginação*. Passo por uma problemática: os nomes aumentam, entretanto não os sinto como verdadeiros. Não acho que palavra alguma encerre algo, ou alguém. E não se trata da arbitrariedade do signo. Não. As palavras (mesmo encenadas e cheias de expressão) dizem menos que um centavo. E o pior é que todas as línguas se prefiguram como mortas. Não há palavra que dê conta de traduzir isso. Vou ao quarto *quando isso é possível* e durmo na escuridão que é sem sem palavras. Vou ao quarto e durmo.
 Mas sei das querelas de infância. Quando penso nos pensamentos de criança não vem palavra alguma. Já ouvi teorias ridículas que dizem uma cem-coisas da infância, entre elas aquela que diz da amnésia infantil. Não há nada mais bobo que isso. As crianças não apagam nada, ao contrário, os eventos ocorridos ali são apagados pelo adulto, que os toma por completo. Não me vem palavra alguma quando recordo do rosto da Carla *garota que foi pedida em namoro aos quatro anos de idade*. O rosto da Carla, que era doce branco-nuvem. Nada vem quando me recordo do demônio da mãe da Carla sugerindo "criança não namora!" O caralho. O instante ainda prevalece. A velha amaldiçoou o que tentou dizer. A mãe da Carla não nos deixou namorar *família de interior, Buenópolis, Minas Gerais*.
Depois que cresci aprendi a beber vinho sem engolir o líquido, embora meu fracasso seja constante. Quando cresci, dei que ficaria com a Carla de quatro *quatro anos de idade*. Fui a Buenópolis à procura dela. Não queria palavra que fizesse lembrá-la de uma forma invertida, traída. Essa cidadela do interior é pequena como cu. Procurei por ela e lá eu vi uma Carla de vinte anos. Não tenho a Carla de quatro, muito menos aquela de quatro anos. Novamente o velho gosto de traição me carcomeu o fígado; ela, Carla-de-quatro-anos, nada tinha a ver com quem via. Vinha uma mulher de bunda gigante *as bundas grandes com celulites podem ser interessantes, uma vez que parecem querer esconder algo ali, entre cada furo, um novo furo que há*, mas não era quem procurava.
A professora de português da sexta-série fora minha primeira médica. Ela diagnosticara meu problema que hoje contesto. Contesto sem uma hipótese melhor a me ofertar. Sei que não são palavras que preciso. A varanda, afastada como é. A varanda que se afasta da mesa de jacarandá é algo instigante. Sempre tive nojo de textos com orações curtas, rápidas, repleto de ponto final. Parece que o autor não aprendeu a coordenar as orações.  Ir à varanda é impossível *ao menos agora* sem ponto final. A cada passo um ponto, que me encerra na professora de português. O médico também do contradizer. Se o ponto final interrompe um fluxo, interrompe um fluxo que ora não me faz pensar, ora somente repito. O ponto final é fundamental na ida à varanda, e mesmo pensando cá no médico, na depressão, no caralho. O médico ouviu falar que eu não saia de casa, não saio mesmo... Para ele isso era resultado de um suposto mal-estar cujo nome ele deu de depressão. Mas ainda não encontrei mal-estar nenhum. Não sinto essa coisa de angústia *entrada no latido dos cães*.
  Eu tinha uma namorada que morava *namorada e morada prenunciam algo?* no Novo Mundo, um bairro de Goiânia. Eu ia vê-la toda sexta-feira, antes, porém, parava na Anhanguera, um bar por ali, e bebia oito doses. Ela dizia que eu era alcoólatra *não se ama deus nenhum*, e cuidava de mim. Ia com oito doses observando os cães. Eles sempre estavam embriagados a ladrar constantemente. Era de praxe nessas sextas-feiras eu enxergar um cão por entre os olhos caninos. Eu também os ouvia *a língua viva canina*. Não tenho palavras para dizer daquilo que me ouvia, que me via; do corpo quando brota o torpor há sempre um quê de maravilha. Eu ouvia e era ouvido, carro nenhum soava naquele momento.
  Lendo sobre a Nigéria *era um livro que o editor pedira para combater o racismo*, eu saquei certas nuanças para lá de instigantes. Os povos Iorubas topavam com certas divindades que os tomavam por completo. O cão estava ali, as árvores ali. Eu não quero a palavra que diga o que me ouviu naquele momento. A varanda sem jacarandá também me ouviu *no cachorro que corria atrás de um preá assustado*, também me ouviu desde o momento em que o véu da cortina (os olhos da casa) transpareceu.
 Minha doença é a falta de palavras *poliglota, mãe-do-céu*. Seu mal-estar é denominado, segundo o D.S.M. IV, depressão *não sabe bulhufas do que seja mal-estar*. Angústia é o outro nome disso que é o contrário.  O fato *Doutor* é que nunca nunca nunca eu senti coisa assim, como se diz. Tem um pé de jambo na casa que minha mãe morava e antes de ela falecer eu subia o pé acima... Tem um pé de jambo, acho que vi um ali, perto do cachorro que corria atrás do preá. Eu vi pássaros que não participavam da composição, mas estavam como efeito coadjuvante.
Até quando vou manter um tabuleiro aleatório aos moldes de Fischer, ao passo que, do outro lado, uma defesa tão bem arregimentada? Até onde o marcador do word vai piscar à procura.
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                Do editor, o recado.
                       (Cap. VI)


A campainha do susto soou. Não espero ninguém (Maria não seria). Até conto com a possibilidade de ser arrancado desse torpor por ela, mas não agora. A campainha soa, grita, geme. Não posso me aquietar, o barulho insistente retoma como batida cardíaca.
É do editor, o recado: “Já não é possível aguardar. Ninguém do vilarejo foi entrevistado e há mais de um mês você permanece nesse lugarejo. Todo dia alguém leva comida e nada de você escrever (pelo menos nada me foi apresentado). Está precisando de alguma coisa? É bom que escreva, melhor, é preciso que entreviste os moradores, que conheça as origens da cidade, a relação com a Igreja Católica, com o campo... É bom que não se atrase: duas pessoas estarão amanhã à sua porta para dar o primeiro depoimento (pela manhã). A editora tem tempo contado para publicar o texto. Bom trabalho!”.
Infelizmente terei duas pessoas no meu encalço amanhã pela manhã – vou urinar à noite (enurese dos diabos). Quando moleque, toda vez que ficava pendente algo para o dia seguinte, batata, eu acordava ensopado. Preciso dormir (o sonho, o vulto. A espinha dorsal foi revirada. Não como a primeira vez, porém a curva da coluna, um evento que faz Marques Wilker Devívido ser arremessado ao chão). Que horas? Ainda não deve ter passado uma ou duas horas. No Embalo novamente ao sono *não se lembra do sonho*. Mãos aos olhos esfregando cada milímetro da retina, água gelada ao rosto, a pé. A campainha.
As duas pessoas entram na casa timidamente. Foram convidadas a sentarem-se à mesa, sentaram-se. Seus pais vieram de onde? São Católicos? As perguntas, embora nada complexas, foram elaboradas demoradamente. Uma última pergunta: alguma palavra traduz sua vida? Os dois entrevistados sorriram simultaneamente. Não responderam e foram embora. Para as respostas das perguntas elaboradas era mesmo necessário começar pela última, porque, nenhuma pergunta teria sentido para além do questionamento da palavra. O vulto, a varanda, o latido dos cães, o cão correndo atrás do preá, sim, são valiosos numa perspectiva que não é necessário responder a última questão. As pessoas que vieram à minha casa são Católicas, amam crianças e cresceram nessa terra. Conversei com pessoas que usavam as palavras às escondidas *não há caminho para casa, não há casa alguma*.
 Luciana, uma garota que estava a pouco aqui, disse que queria voltar para Minas Gerais. Ainda, que Santo Antônio não teria sido fundada a partir da Igreja Católica, ao contrário, fora a partir do plantio que teriam aglomerado pessoas naquele local. A Igreja Católica seria apenas a religião daqueles que vieram explorar essa terra, jamais o fim de eles chegarem *ninguém da História Cultural iria confirmar essa tese*. Eu, menos ainda: o que foi dito à distância, sem nenhum afeto. Luciana disse que ouvira de outros daqui, dizia ela, pelos cantos. Não é por aí. Luciana não diz algo que a tome, que consome as entranhas. O vulto me tomou essa noite mais uma vez.
Certa vez li que os sonhos são uma espécie de termômetro, ou seja, que um sonho recorrente seria sinal que algo não ia nada bem. Contudo desde meninote nenhum mal me possuiu *gripe, dengue, sarampo, malária nenhuma*.  Meu mal é a falta de palavras, como dizia a professora Jucimaria da sexta-série. Meu mal é depressão, como dizia o doutor psiquiatra. Eu queria mesmo indagar alguém: se eu perguntasse ao psiquiatra (que não me recordo o nome) se depressão é o mesmo que a falta de palavra. Se fosse perguntado à professora Juciamaria: depressão é a falta de palavra? Eu sofreria de dois males, que, como em um complô, conspirariam contra minha integridade. É paranoia.
                
...
Minha mãe é essa da foto. O meu tabuleiro tem mais afeto que se imagina. Aliás, a foto de minha mãe está no verso do tabuleiro, basta virá-lo para notar que a foto está intacta. É minha mãe ainda criança. Nunca gostei das fotos de pessoas adultas, parecem ser falsas. Fotos não foram feitas para serem expostas por aí, sem critério. As fotos é que nos arremessam às entranhas, as fotos de criancinhas *o imaginário que forma o eu*. E se deve tirar mais que uma; é sempre uma foto apenas. Tiraram essa foto de minha mãe e jamais o corpo dela foi tirado para dançar novamente por uma câmera. Eu ainda não conheço a minha foto ainda, talvez alguém já a tenha guardado por detrás de um tabuleiro de damas, não acho seria digna de um tabuleiro de xadrez.
Minha mãe, Wirna, depois de ouvir o meu primeiro diagnóstico, oriundo da professora de português, tratou de me matricular em tudo quanto há de cursos de línguas. Não é à toa que conheço os diversos métodos de ensino e resolvi cursar Letras. Essa escolha não foi simplesmente porque gostava de escrever, ao contrário, já tinha ouvido que o curso ensinava o estudante a como deixar de escrever. Minha primeira tentativa de me curar *?* foi iniciar esse curso. Eu sabia mesmo que era preciso abolir a obsessão da palavra, de escrever desmedidamente, o curso ensinaria a livrar-me do meu sintoma – poderia mesmo ter me tornado um crítico, um pesquisador que odeia literatura.
A palavra da busca continuava travada num meio de peões *Exu*, poucas peças grandes. A palavra-busca sempre esteve no cerne de um caminho que não conseguia seguir. O que havia antes da professora de português? Essa é uma pergunta que sei que não devo me fazer. Naturalmente, anteriormente havia outro cenário. Naturalmente.
Minha mãe tinha um nome próprio, o pai não, senhor forte (jogo sólido com poucas possibilidades de intrusões). Wirna, mamãe, era quem (nos poucos momentos) buscava acalentar minhas solidões. O pai, embora presente, nunca assim foi chamado. Ele era o provedor, o provedor do lar. Engraçado, amigo, descolado... Quando faleceu, estive no velório, silencioso. De boca, já que minha mente desenhava palavras a todo o momento. Logo após o pai ser enterrado, nenhuma palavra me veio. Quando virei às costas à cova, tive o primeiro encontro. A força do vulto percorreu toda a espinha, cada vértebra, passando pelo estômago. A topada não tem tempo certo, mas o vulto passou a comparecer de quando em vez.
Eu nunca quis dar nome ao vulto. Mamãe me levou ao Centro Espírita, mas toda vez que eu entrava no Centro André Luiz havia uma palavra – tentavam aplacar o desespero com palavras. A professora era retomada – busca como uma incógnita.   


...

Ela era viciada em fotos. Mamãe insistia em registrar todos os momentos sem pudor... Certo dia, diante de convidados, alguém deixou escapar uma flatulência. Não deu outra, logo apareceu uma máquina fotográfica para guardar o momento. Era sempre a mesma justificativa: "Não se poder perder o instante!". Um saco. A lembrança dos meus pais parece me fazer cair na mesma armadilha *falar o óbvio*. É claro que minhas recordações estão atreladas à primeira casa. Na verdade fui expatriado, de certo modo. Isso porque nasci em um hospital que me abrigou por menos de quarenta e oito horas, e logo já estava noutro canto, outra cidade - Buenópolis. 
Essas pessoas vêm aqui e contam histórias esperando a máquina fotográfica de mamãe *ou a benção do Papa*. Essas pessoas estão fartas daqui, do olhar ensandecidamente mortificado dessas terras, e, ainda assim, aceitam conversar comigo. Saco nenhum! Um pouco de longevidade no que é narrado é fundamental, todavia essas lavadeiras trazem apenas a roupa do corpo, do dia anterior. Queria algo de longe, uma energia que consumisse meus nervos, uma história que pudesse me arrebatar tal como ocorria na sétima-série: os romances de Pedro Bandeira me enlouqueciam. Não só. Li os três volumes de "O estudante" (não recordo de quem seja)... Meu pai precisou ir à Brasília para buscar o volume três. Na verdade, ele fez a viagem por outros motivos (coisa de igreja), mas acabou comprando o livro que tanto queria.
Como é triste o poder clerical da crítica literária. Depois de mais idade, li um texto de algum puto crítico que cuspia em quase todos os livros de minha infância. Pedro Bandeira, Adelaide etc. eram somente agentes trabalhando para a Ditadura Militar, profunda falta do que fazer. Eu penso todos os dias, esses putos seriam mais felizes se escrevessem romances. Outra desgraça: Rubem Fonseca *pai do conto urbano brasileiro* é massacrado por idiotas aprisionados na vida do autor. Buceta. Se o desgraçado fudeu alguém ou não, não sei, mas o fato é que o puto escreve bem que nem o diabo. 
A sensação é que minha história está correndo melhor, agora. Uma esteira em velocidade avançada... A merda dessa casa me botava para lá de comovido. Os quartos (esses que não entrei) permanecerão sem cheirar minha presença. E pronto. Esses romances que escrevi não são de todo ruim. É mesmo uma merda tirar uma foto de quem está do seu lado todos os dias? É assim, porra. Meus romances são fotos tiradas da mesma mesa *há quem goste*. Imbecis. Ainda assim, ficar nessa casa por tanto tempo (sem ver quase ninguém) também é uma fotografia incessante. É ver a mesma merda. 






VII (Outro ponto)


       Acordei mais disposto. Ontem à noite, eu já anunciava certo bem-estar: meus pensamentos estavam correndo livremente e essa casa não estava tão impregnada de minhas coisas. Quando aqui cheguei, pensava que ficar só era a minha salvação, porque vinha de uma correria danada. Se fosse tão fácil assim, Zaratustra não teria descido da montanha.
            Não sei fazer café, mas me atrevi a botar a água no fogo e fazer desse chá um café. Um desafio. Qualquer atividade desempenhada na cozinha é um tanto tortuosa, porém me recordo que quando criança eu mesmo fazia meu leite com toddy. Era uma lambança só! Às vezes meus irmãos mais velhos também pediam para eu preparar em maior quantidade... Tomávamos todos rapidamente. Naquela época, eu não tinha a terrível obsessão de tentar me lembrar das sensações. Bebíamos e logo estávamos jogando bola ou brincando de Playmobil.
            Hoje, ao acordar, aferi a pressão. Ok. Geralmente tenho pressão baixa, baixa mesmo. Tomei meu chafé e abri a porta que dá para o quintal. Esse lugar é uma graça: galinhas ciscam sem questionamentos, adiante, os porcos aguardam a lavagem. Ah, os cães. Essa porta está localizada na parte oposta da varanda, enquanto de um lado vê-se o horizonte (preás e animais mais exóticos, penso), do outro os bichos do dia-a-dia.
            Caminhei descalço. Logo me lembrei de que queria ler alguma coisa. Além disso, meu estômago já anunciava a ausência total de energia. Retornei rapidamente ao interior da casa e comi uma banana que ali estava apodrecendo. Em seguida, com a porta fechada, sentei-me à mesa e abri o primeiro livro. Veja só. “Assim falava Zaratustra”, um romance que eu podia ter escrito se tivesse nascido antes do autor. Esse tipo de pensamento fode tudo. Hoje, entretanto, não tenho disposição para estar quebradiço. Vou lendo. Escrevo *escrevendolendo*. 



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