Devívido *projeto de um novo romance*
Devívido
I
O jornal aberto nessa manhã não encerra nada além dessas páginas viradas (ao acaso*). Tudo ali, sem salvaguardar o proibido. Os livros sobre a mesa de
jacarandá (ah, a solidão do jacarandá*) dizem pouco mais que uma floresta devastada. Nem mesmo
o jogo de xadrez montado aos modos de Bob Fischer, agora, faz algum sentido...
Contaram-me que abrir um jornal era a experiência maior de adentrar em um novo sangue, um corpo sem vértebras (nunca acreditei*). Por muito tempo, escrevi diversas matérias a jornais que nunca movimentaram o meu sangue. Na verdade, pouco pratiquei a leitura; escrevia, escrevia. Quando penso na leitura dos pasquins, quando na universidade, ficava de sobressalto, me arrebatava (hoje, como seria? Faria esse sangue ferver?*).
Abro o jornal e leio. Leio, leio como todos que abrem o jornal pela manhã à procura
de algo que transcenda e traga o sol ao dia nublado, que
deixe o sal a gosto, a leitura entusiasmo (mas o jornal, sempre continua na mesma página!; o tabuleiro na mesma posição!; não há movimentos!*).
Esse livro aberto: já não quero saber
sequer o autor ou o gênero da obra. Uma página. Um livro, uma página
de outro livro (o latido do cão lá fora*). Jamais me atreveria a olhar o som do
latido. Ultimamente, é raro virar as páginas: o livro está na mesma página aberta dos
dias anteriores (página treze*), desde minha chegada aqui.
Quando chegamos, Cruciela resmungou por uma semana (que esposa aceitaria uma mudança tão drástica?*) Agora, minha esposa traz aquele prato novo (e é manhã: cheiro monótono de terra molhada*). O mesmo prato que você comia quando menino, vem!, diz ela. Reluto como quem teria algo a fazer na desobediência. Na Bahia,
era comum o cuscuz temperado pela manhã. Minha mãe botava na cuscuzeira uma
série sem fim: carne seca, mussarela, aipim, um infinito de tempero. Minha
mulher traz cuscuz temperado e café (isso é que se chama manhã*). Como e bebo.
Como obra desse torpor, meu
computador insiste sinalizando com o marcador de texto (vai escrever, Devívido*). Devo escrever um novo romance (um novo romance*). Preciso de um romance: meu verdadeiro xadrez de hoje.
Quando saímos da cidade para essa terra vermelha, a ideia era simples: vida no campo refaz a criatividade (fala de psicanalista vulgar*). Toda as tentativas de retomar a escrita para os jornais se esvaíram (bule vazio*). Terra molhada, bem. Levanto meu olhos, mas meu corpo não. E, sim, está chovendo. Escrever nunca havia sido um problema, até que os dedos se manifestassem. Primeiramente, eles adormeceram as pontas, em seguida e paulatinamente, os dedos enrijeceram... Nada de absurdo a ponto de obstruir a vida cotidiana, mas, quando diante de uma folha de papel, uma rigidez de ferro.
Quando saímos da cidade para essa terra vermelha, a ideia era simples: vida no campo refaz a criatividade (fala de psicanalista vulgar*). Toda as tentativas de retomar a escrita para os jornais se esvaíram (bule vazio*). Terra molhada, bem. Levanto meu olhos, mas meu corpo não. E, sim, está chovendo. Escrever nunca havia sido um problema, até que os dedos se manifestassem. Primeiramente, eles adormeceram as pontas, em seguida e paulatinamente, os dedos enrijeceram... Nada de absurdo a ponto de obstruir a vida cotidiana, mas, quando diante de uma folha de papel, uma rigidez de ferro.
Escrever nesse velho computador, nesse sítio do pai de Cruciella, é como um problema de xadrez (o verdadeiro*). Eu fujo do romance; quando percebo estou compondo problemas de xadrez (mate em seis lances*). Escrever é como procurar as possibilidades de mate (não há acolhida*). O que escrever?
O analista, aquele vulgar, disse que o meu sintoma era desejo de escrever. Acrescentou ele: o enrijecimento dos seus dedos, associada a pouca criatividade, enceravam um verdadeiro desejo de escrita de algo real, próprio, verdadeiro (*sinthoma sanguíneo). Não sei por essa fala, mas fato é que sonhei... Estava em uma fazenda, escrevendo um romance. Daí pra frente, chego aqui: silêncio, sítio, esposa, computador, xadrez, café da manhã... Que tal escrever sobre vinhos?, diz ela. Escrever sobre vinhos, não escondo o riso de canto de boca... Da cor, gosto. O gosto, gosto.
Nenhum escritor deseja estar no corpo de outro escritor, a não ser quando a própria criatividade o abandona. Hoje, eu podia ser o pior dos escritores, desde que houvesse vontade, inventividade (tesão*). Todos querem um novo romance, eu acho. Se eu fosse falar de família teria
muito do que dizer: diria de igrejas. Igrejas. Diria de quando o pai Damião abriu
uma nova igrejinha na Bahia. Os olhares espantados. O pastor era o meu pai, pregava a
palavra, meu irmão tocava o órgão (aquele instrumento fora doado ao vizinho, posteriormente, o jogado fora com a justificativa de ataque de cupim - pobres cupins não sabem tocar órgão*). Alguém me disse que para escrever é preciso uma dose de
ternura, de afeto (coisa de psicanálise*). Vai ver que a minha falta de compaixão é o que dificulta a escrita (*tenha compaixão cupínica!). Eu escrevia quando secundarista. Eu escrevia e logo um dizia "é carta!"; "é conto" (é o caralho*). Definir aqueles textos foram a maior tolice dos professores. Agora, quando penso em escrever, eu sou inundado da mesma pergunta: qual gênero é? Travo. Já viu alguma criança definir o gênero para escrever? Perguntava meu analista. Ele completava: Ternura e compaixão: você confunde esses nomes como quem esquece de si (todo esse blábláblá e nenhuma palavra advém ao projeto de romance*). Preciso de um romance.
II
Café, ternura e compaixão. Tomo o café somente após esfriá-lo. Abro o livro e a primeira frase não me satisfez –
fecho-o de supetão. O susto. Fechei o livro como quem não queria encontrar de
novo alguma coisa.
Mais um gole desse café gelado. Passo a página do jornal, e leio não mais que uma linha. Quando meninote, eu lia todo o
jornal e contava tudo para o pai (lia a bíblia também*). Parei de contar o que lia, não me lembro, mas andaram rindo de mim (menino é besta, não gosta de ser zoado*). Hoje, acho que eu mais queria era ser zombado, que rissem de mim, da minha barriga, das minhas tetinhas... Eu devia sugerir isso aos novos escritores, mesmo não saindo uma letra desse romance:
- A zoação talvez seja a chave da escrita.
Quando leio, não avalio os livros pelo autor
ou pela temática. Até quando me atrevo a estudar xadrez, também
não o faço por tema. Estudo abertura do mesmo modo que estudo os finais de jogo
(e até simultaneamente). Mas, quando vou escrever... Tema, gênero, enredo... E o rio seca.
Uma única vez, eu resolvi estudar xadrez com um professor,
Mestre Internacional, mas ele dizia para calcular cada milímetro do jogo;
que eu devia estudar aberturas, após, meio jogo e, só depois, finais. Mas eu leio e estudo do mesmo modo que bebo café. Bebo café gelado; deixo a xícara onde for. Às vezes, até chego ao final da leitura de um romance (raramente*). Porém, geralmente, eu não me lembro dos finais dos livros, não há nada que me faça lembrar do último capítulo (medo de morrer, diabo!?*). Leio
cegamente o desfecho dos livros; é como se não houvesse fim. Aprendi a desconhecer como terminam as coisas. Devia escrever assim: escrevendo, escrevendo... Sem pensar no final.
Esse vinho à mesa de jacarandá (é cabernet*).
Sorvo o gole e tento recordar o último gosto do vinho à boca – não há
recordação. O vinho fica à boca e, enquanto há liquido, há gosto. Depois que
bebo a última gota já não há cabernet, vinícola, vinho, carta,
gosto (nada*). Apago o derradeiro gosto e bebo novamente. Apago o
derradeiro gole e bebo novamente. Bebo novamente, o derradeiro gole que
inexistirá em minhas reminiscências.
Minha mulher (Crucielle*) chegou da capital ontem de
tardezinha – eu já estou aqui há um mês sozinho –, dessa vez, parece veio para ficar. Isso me assusta? Eu, livros, xadrez, vinhos, jornais e mesa de jacarandá (ahhhssusta*). Esse vício de tentar entender a mim mesmo foi coisa daquele analista vulgar! Devia mesmo é só pedalar, andar... Mas é que de repente, o pensamento me vem e me paralisa. Ela está aqui e pronto. Devia ser assim. Não. Penso se isso me assusta ou não. Deve ser por isso que parei de escrever (escrevia antes?*).
Pedi ao moço que cuida da fazenda para trazer
todo dia um novo santo jornal e leite e comida, (que pouco come*). Pedi ao moço
que trouxesse o jornal, que o jogasse por debaixo da porta (que a comida ficasse ao lado – que ele desse no pé*). Não queria ver o
rosto do moço, não quero saber do nome do moço. Preciso escrever! Ver o moço ou saber o nome do
moço poderia desviar a minha atenção do propósito de chegada aqui. Preciso de um romance. José e Fabiano não são moços. Agora, por exemplo, ele se tornou o moço do jornal, e isso só me faz desviar o pensamento.
Crucielle trouxe cá
uns livros, os livros da minha biblioteca que ficara na cidade. Debaixo dos braços, vinhos, jornais e um novo tabuleiro de xadrez, que ela bem equilibrava naquele meio. Ela estava com a
mesma roupa de quando a vi no aeroporto, de quando retornou à cidade?
- As perguntas não me deixam escrever!
Crucielle aproximou-se e sinalizou para que eu a ajudasse. Mecanicamente, descarregamos um a um: vinho, jornal e tabuleiro. Eu
os cheirei, e o deles nenhum odor. Os livros que recebi foram abertos e
postos juntamente com os demais, em cima da mesa de jacarandá. Olhei a capa de
todos e reli cada imagem contida nas capas dos livros que chegaram ontem. Os
vinhos foram cuidadosamente alocados em recinto próprio. Antes, porém, li o rótulo de cada um (por isso não escreve*). Não bebi nem um
gole, não queria me esquecer do último gole da bebida (e se lembrava disso*). Nenhuma bebida nenhuma leitura nenhuma problema de xadrez.
Aqueles jornais que chegaram com
minha esposa ficaram abertos, semiabertos na mesa. Eles foram expostos lado a lado com os
jornais dos dias anteriores - até parecia algo planejado. Li a
capa de todos os jornais que chegaram – o café está frio, Cruz, era como eu a chamava em tom jocosos. O objetivo de
ler jornais deve ser o mesmo da existência, um passado presente, quase a imortalidade do dia anterior (a lembrança da última página do dia*).
O café está frio, Cruz! Ela imediatamente passa um
novo café. Bebo-o ainda quente e queimo a ponta da língua, e deixo de lembrar de como era antes de queimá-la. O
café está quente, Cruz, inferno! Queimei a língua. Dá a língua pra mim, ela. Parece não se importar muito com a tal queimadura. A língua é para sentir o gosto que
vou esquecer após o último gole (gole tragesquecido*). Ela é usada para esquecer o profeta morto na encruzilhada - a língua esquece do ser. Não só. Ela assassina o ser e a última palavra; é como uma máquina mortal que nos coloca de lado em função de suas artimanhas. Talvez, o latido dos
cães seja língua viva, pois qualquer um recordaria do último latido. Como é
mesmo o latido do cão, Cruz? Ela rapidamente reproduz: au-au. E percebo, sem tanta dificuldade: na língua dos cães não há esquecimento; é língua viva. Nesse mesmo sentido, o latim pode estar vivo, porque
ninguém o esquece. Ele está na boca dos gramáticos, dos médicos, das plantas. Tá aí:
- A escrita deve ser viva como o latim.
Devia escrever meu livro em latim...
Devia começar com as expressões consagradas, mas que ninguém sabe exatamente
como dizer, assim, ninguém as esqueceria. Haveria um personagem advogado, esses que vomitam própria vida em expressões duvidosas. O advogado, que deveria ser meu
protagonista, falaria várias expressões em latim, e, entre uma e outra, falaria
uma expressão que ele mesmo teria inventado. Seria língua viva uma língua nascida morta: a língua criada pelo personagem inexistiria.
Um personagem assim seria como o cavaleiro
inexistente de Calvino. Por que pensei nele, Calvino? Meu analista diria que é mais um desejo de grandeza, desejo de ser lido, de tornar-me um clássico. Numa daquelas sessões, ele chegou aventar que a minha paixão por Ítalo Calvino seria um misto de calvário e desejo de ser um autor clássico. Ele explicou do modo dele: calvário de Calvino, Clássico porque Ítalo Calvino já era um clássico. Hoje, pensando nisso, tenho uma vontade estranha de concordar com meu analista vulgar - eu só acrescentaria a vontade de estar entre os autores clássicos para Calvino.
- É por isso que não escrevo!
Eu me lembro de que deixei
a porta do carro aberta no aeroporto. Queria muito chegar logo aqui. Saí
correndo, o avião estava prestes a decolar – as portas do meu carro ficaram entreabertas. Havia entre mim e esse sítio, o checklist, que foi feito
pelas cucuias. Suas portas
estão sempre abertas, diria meu analista?
Os quartos dessa casa têm portas
abertas. Cruz, você chegou e não saiu da sala, notou os quartos? Só
sala, cozinha, banheiro. Eu também não me interessei em conhecer o interior dos
quartos, desde que aqui cheguei. Todos esses dias, eu dormi na sala, apesar das portas todas abertas.
Também não conheci a varanda, sei que o vento vem de lá, vento forte. A vidraça
que me separa da varanda está aberta, só um véu, a cortina, que me
faz a separação. Todos os quartos dessa antiga casa, os sete quartos desse mausoléu estão abertos com uma fina película negra, cobrindo a imagem interior – o
interior que não quero ver, não quero me esquecer –; o banheiro não tem
divisória, não se preocupe. Caminho pelo corredor rumo ao banheiro, e vejo alguns quartos de portas entreabertas, apenas a cor preta tinge o olhar. Se em
cada porta ficasse um jornal aberto, uma garrafa de vinho aberta, uma peça de
xadrez e um livro, talvez fosse um convite para eu entrar; entrar e continuar sem escrever. Se em cada porta tivesse um pouquinho de Cruz, talvez simplesmente eu continuaria sem escrever.
Conduzi os jornais rumo às portas, deixando-os ali,
quase que automaticamente. Já as garrafas de vinhos têm pernas e andam trôpegas às
encruzilhadas – cada peão do xadrez, eu os deixei ao lado. Jornal, vinho e peão, eis os guardiões de cada porta-portal. Todos os caminhos estão embebecidos de vinho-cor-de-sangue, vigiado por um peão que haverá de
ler jornais para tentar não se esquecer de algum passado recente. Eles parecem à espera. Aliás, os corredores andam à espera: do quarto, do banheiro... O corredor é a parte da casa que sempre espera (talvez por isso nunca se esqueça*). Ele já foi esquecido? Sim, na entrada de cada quarto deixei os três objetos (quase sacros!), e o corredor os assiste num silêncio sepulcral, esperando.
...
Muitos leitores já me disseram que
gostariam de ter o nome em um de meus livros, eles me entregam todo o segredo,
historietas até belas, algumas. Nunca escrevi um livro cujo título fosse meu
próprio nome *o título Wilke não atrairia nem a mãe*. O que esperam meus
leitores ao desejar o próprio nome nos livros? Abandonei a cidade fruto de
tantas histórias, e não me sinto seguro aqui.
Os enredos da vida não se completam;
não se encaixam em corpo nenhum. O editor queria um livro de contos, contos
populares de primeira mão *uma coletânea*, que ninguém tivesse ouvido. Até
mesmo quem os tivesse contado... Que só os tivessem confidenciado a mim. Eu
queria um romance. Eu quero um romance. Não desses já escritos sobre coisas
banais do cotidiano, quero um romance novo. O editor quer um livro de contos
para rebater a tola crítica *a mesquinharia da crítica literária diz somente
dos romances pastelões*. É só ver um escritor ganhando dinheiro com livros
que a síndrome Joãozinho Trinta bate à porta. O editor
quer que eu prove ao mundo das letras que sei escrever. O editor quer.
Meu sangue. Eu quero romance. Minha
mulher chegou ontem: vinhos, xadrez, jornais e livros sobre a mesa de jacarandá
(não senti falta do cheiro da buceta dela nesse último mês). O word continua
pedindo bênção para escrever. Agora, todas as portas possuem uma peça de
xadrez, um peão, um vidro de vinho aberto, jornais e livros. Os quartos estão
cheios de mim; a cidade é um tédio nato (não me sinto bem aqui). Meu rosto ao
espelho era tédio sem espanto. Esse novo ar, essa nova terra vermelha e essa
mesa de jacarandá estão sem espanto, convivem comigo na tola harmonia insana do
campo. Haverá aqui um novo tédio? Um tédio longe dos tédios das capitais. Um tédio
sem gás carbônico e efeito estufa – um tédio sustentável. Os carros voavam por
cima dos homens, que atropelavam os animais, nas cidades. Os carros atropelavam
os animais, que eram humanos vestidos de terno de linho. A cidade esmaga tanto
que é preciso ir ao interior à espera de histórias que sejam novas.
Que sejam novas mesmo repetidas por
milhões de velhos gagás de trezentos anos. Que sejam novas mesmo em cidades
velhas, de fósseis cadavéricos que engatinham para se locomover, beijam o chão
a cada passo. O avião me trouxe para uma cidade maior, não me lembro do nome, e
algumas pessoas já me aguardavam com o tom fúnebre do interior. Fui arremessado
em um corcel no qual me conduziram a esse sítio. Os velhos já
devem ter morrido, porque desde que cheguei aqui não vi nenhum, sequer saí da
sala: sala-banheiro, sala-cozinha. Somente minha mulher entrou aqui, aqui, tudo
encerra nesse tabuleiro montado aos moldes de Fischer.
Bob Fischer foi o maior de jogador de
xadrez de toda a história, apesar da história oficial considerar Kasparov.
Fischer é o maior jogador de xadrez de todos os tempos, apesar de já ter
morrido e ter sido caçado pelo governo norte americano. Teria hoje... Não sei.
Fischer morreu, mas o jogo desenvolvido por ele continua sendo jogado por todos
os aprendizes de xadrez. Há um sorteio das peças da última linha, somente os
peões continuam intactos. A torre fica onde o acaso mandar, o bispo, o cavalo,
também. Fischer desenvolveu o xadrez, embora meu tabuleiro esteja ainda parado,
o novo jogo de xadrez é extremamente dinâmico. Aqui, não há adversários
*provavelmente não jogaria partida alguma, com nenhum adversário*.
Ainda meninote, observava os jogos dos
outros, não me atrevia a mexer uma peça sequer. Várias pessoas já me
perguntaram o porquê de não desafiar os outros. Preferia ver a beleza do xadrez
pelas mãos dos mestres. Meus livros são partidas feitas por outrem *procurar
imperfeição em partidas mestres pode ser um tanto desafiador*. Tenho uma
fórmula eficaz para escrever um romance, o problema é que a crítica acaba
dizendo que é romance pastelão. Nunca me disseram isso claramente, mas sinto
que comentam. Não quero um romance pastelão. Quero um novo romance. Todos os
meus livros é como um pastel gigante: cheio de massa e com pouco recheio.
Recheio é o que faz um livro não ser
lido por muita gente. Recheio é o que faz o livro ser lido por poucos, que são
considerados intelectuais. Meus quinze livros são todos cheios de palavras, as
mesmas palavras e com os mesmos significados *todos os livros com ampla
tiragem*. Meu editor, diante da fala do publicitário, disse que eu devia
escrever um livro cult, um livro que deixasse a crítica deslocada.
Coletar as histórias desse povoado *Santo Antônio de Goiás*, dessas pessoas que
pouco mencionaram as suas histórias a outrem – seria uma forma de rebater os
termos pejorativos que perpassam minha imagem.
Minha imagem pública é uma casa de sete
quartos de portas abertas *a oitava é a porta de entrada*. Sete quartos com
vinho, peças de xadrez, jornais e livros à porta e um cão que late lá fora, que
ouço o renitente latido. Minha imagem é um sítio no interior, lugar de terra
vermelha, onde um moço entrega jornais e traz leite todos os dias pela manhã.
Minha imagem é a mesa de jacarandá. As portas abertas e o café frio *o
marcador do word aterroriza até o diabo*. Minha mulher
silenciosa fazendo um novo café que ficará gelado, que será tragado fazendo
cara feia. Minha imagem são quinze livros escritos de massa de pastel.
Pastel quente – vou ao banheiro, Amor.
Não vou comer, não vou queimar minha boca. O pastel está cheio de recheio,
pesado, enquanto meus livros são pastelões com pouca alternância de léxico. Se
minha mulher escrevesse um livro, seria um livro de recheio, de receitas
quentes e açucarada. Se minha mulher escrevesse-escrevesse o café matinal, o
café quente que se torna frio diante de minhas mãos. O pastel que, mesmo frito
na hora, se metamorfoseia em pão amanhecido diante de mim, diante das minhas
mãos...
Corpo, tudo. Tudo em mim é massa
sem recheio. Meu corpo é gordo como uma bola de neve. Não há músculo para
perfazer a silhueta, nem gordura propriamente dita. O que há é retenção de
líquido. Meu corpo é inchado – inchado de quê? Meu corpo é inchado de massa de
pastel que não é possível ingerir. Atrás de mim tem uma varanda de portas
abertas e o vento, insistente, sacode os cabelos da cortina, mas prefiro apenas
ouvir o chiado. Não vou olhar. Lá deve haver uma paisagem, que pode ser bela,
mas que o nome é paisagem. E, como sei o nome, o que hei eu de fazer olhando
algo que já sei soletrar? Paisagem é o vinho, o marcador do word, a
mesa de jacarandá, os jornais, os livros e meu tabuleiro de xadrez aos moldes
de Fischer *passagem*.
Xadrez já me é parte. Meu tio foi preso
em um presídio de segurança máxima, porque comercializava tabuleiros de xadrez
do exterior, comércio ilegal. Meu tio jogava xadrez por detrás das grades e
vencia a todos. Enxadrista do caralho! Não tinha para ninguém. Será preciso ser
o próprio livro para escrever uma obra minimamente original? Comercializar
tabuleiros para vencer a todos? Só conhece o vinho quem o traz à boca, quem faz
o vinho correr pelo palato mole, duro, língua, tudo. Só lê jornais quem quer
ser notícia um dia. Vou dormir com um livro de cabeceira, um livro como aquele
que quero escrever. Cadê?
Varanda-sem-jacarandá
(Cap II)
– Maria, eu vou dormir aqui.
Na sala, mesa de jacarandá e colchão –
vou dormir aqui. É colchão de solteiro, mas vai bem, vai bem. Durmo grosso como
quem toma remédios. Sexo, não, hoje não. Estou um saco arremessado do décimo
andar, um saco de pastelão que cai e espatifa ao chão.
Que sonhos dos diabos. Sonhei que do
lado oposto, pela varanda, a cortina era aberta por um vulto. O vulto, que era
algum diabo, queria me dizer alguma coisa, de onde viera *o diabo traz
mensagens em códigos*. Eu não escutei nada, apesar daquele vulto ter gritado de
minhas entranhas, de minhas costelas, de minhas vértebras. A coisa gritou,
gritou como um grito vibrado em meu peito – eu fui gritado. Direto à alma, na alma.
Uma flecha que sangra mesmo depois de acordar. Como hei de estar nessa manhã?
Arrastei-me rumo às cortinas. O vulto
já tinha saído dali, sem dúvidas, sem remorso e gritando de mil
palavras-entranhas. Encostei-me na renda de seda acariciando sem medo os
cabelos de uma bela adormecida. Vagarosamente arredei as cortinas, começando a
surgir cenas por detrás do véu. As cortinas são cabelos compridos que escondem
os olhos da casa. Devo mesmo atravessar a cortina rumo à varanda *os sonhos
podem permanecer mesmo depois de acordado, alguns sonhos lúcidos*. Os trilhos
da cortina gemem a terrível existência do vulto que me perturbou em meu peito
durante toda a noite. Aberta a cortina: disparei em cada batida cardíaca e
avancei. Adiante. A varanda tem um mármore frio como o tabuleiro montado na
mesma posição, como a mesa de jacarandá. A varanda varre o vulto e me arremessa
além.
Uma vaca pasta sossegadamente. Um
cachorro corre cem metros rasos atrás de um preá assustado. O capim chora
orvalhos da madrugada. Não posso ver nada. Não posso distinguir o que há além
da varanda. Sem exatidão nas palavras, senti o obscuro passar com o arrepio
d’alma *como o vulto noturno*. Ali não há paisagem. Senti um quê sem palavras
que esfria o abdome, o corpo, a amplidão. A amplidão que me tomou todo o grito
sem palavras da silhueta noturna.
Hoje, não quero
café-quente-gelado-morno. Ninguém, nem mesmo os cães seriam capazes de me
retirar desse torpor. Ao longe, ao longe, ao longe. Nada.
Sofreguidão nas palavras nasce para
atormentar a alma vã. Não há como dizer o que é a palavra. Palavra nenhuma
traduziria o instante, a palavra do instante é inexistente, apalavra. Nem o
silêncio daria conta desse choro universal. O choro da varanda-sem-palavras.
...
As palavras são guardiãs da lei *dizia
a professora de português da sexta-feira*. A lei do existir. Queria adormecer
nesse instante-sem-palavras. Queria não mais dizer de romances. Não queria
desdizer meus romances. O Pior de tudo é pensar: pensar é abrir mão das
entranhas, tudo. Queria não pensar agora e permanecer eternamente nessa
bolha-sem-nome; não quero tentar traduzir o instante. Que seja por um segundo,
esse instante sensitivo da varanda; o vento que arroja o oco da varanda é parte
disso que não sei nomear. Disso que faz procurar palavras, palavras que
acorrentarão meu silêncio.
Um barulho. Alguém esbarrou no
tabuleiro de xadrez e as peças brra-brro-brr ao chão. O som estridente das
peças contra o solo me faz retornar ao café frio e a mesa de jacarandá. O
silêncio universal foi calado pelo grito das peças de xadrez *um grifo de
sanidade em quem estava absorto no prazer sensitivo*. O universo mágico me
observa pelas costas, enquanto, de quatro patas, recolho peça a peça, pata a
pata, meus pedaços do chão.
Qual era a posição do tabuleiro antes
da queda? Era a desordem de Fischer? Apesar de eu não possuir o hábito de
jogar contra adversários reais, eu busquei aprimorar o meu jogo me desafiando.
Na verdade, defendi de mim mesmo com a melhor das defesas desenvolvidas, o
dragão da siciliana *assim ficará o tabuleiro agora*. Contra as minhas
aleatórias ofensivas, somente o dragão. A posição das peças era a de Fischer e,
contra essa desordem, só o dragão. Dizem que esse nome “dragão” advém de uma
constelação específica que teria o formato do animal. Não, a história oficial é
feita para ser desdita. “Dragão”, no meu desdizer, é fruto do bispo em fianqueto sobre
o resguardo do cavalo. A saída do cavalo deixa transparecer o fogo cruzado do
bispo. A língua só pode mover-se na boca como fruto do bangue-bangue ocasionado
pelo bispo em fianqueto, as línguas como um xadrez
em jogo.
Procuro as palavras, embora não as
queira. Procuro a posição certa e remonto o tabuleiro, agora, as negras de
siciliana e as brancas a partir de Fisher, aleatoriamente. As negras, minha
defesa, estão de agora em diante de siciliana, dragão da siciliana *não estava
assim antes da queda*. O café. O café da garrafa pulou à minha xícara, que
soltou à minha boca, que queimou minha língua, a ponta da língua, fazendo de
mortas algumas células. Café quente queima como o vulto que arrasa a alma sem
razão. O café esfriou. Bebi frio e reclamei do café que estava frio. Café frio
derruba todas as peças do tabuleiro interior. Por um segundo não pensei no
arriscado café cheio de borra e gelado, senti o peso da alma, o silêncio do
deserto, o deserto noturno do vulto. O deserto real. Soturno. Não há o que o
defina, nem a hora certa a chegar, o vulto comparece fora do tempo, da razão.
Palavras não definem sequer um terço desse silêncio real.
– Nega, estou tocando em algum
ponto branco, branco-branco! Nega, quero sua presença, que basta. Nega, o café
açucarado, cheio de borra e gelado é tudo que tenho agora. Não vou deixar as
palavras gritarem mais alto que meu silêncio, o silêncio de todos: barulho não
escutado. Nega, acho que estou em silêncio.
Não. Não estou em silêncio, penso, e
pensar é falar sozinho. Quando tinha quatro anos, eu descobri que pensar é
falar sozinho. Pensar é se acompanhar. Pensar é ordenar o real para tentar
suportar o silêncio interior.
– Maria, eu ainda não estou em
silêncio.
– Deita um pouco, Wilke,
vai.
As palavras não sou eu, sou o próprio
instante do desdizer. As palavras ditas são capazes de traduzir-me em algo que
não sou: palavras, uma falsidade quase necessária. Deitado, sentado ou de pé.
Sou onde não há o que dizer. Sou o silêncio universal: a fala hermética do
vulto, que grita em silêncio e quebranta todo coração vazio de recheio.
Silêncio: mais que mil palavras inquietam o disperso coração, não, somente no
sonhorreal do vulto me refaz nesse tabuleiro.
...
Os quartos dessa casa velha estão
fechados de portas abertas *a encruzilhada abre caminhos, e Exu é que une a
matéria ao imaterial*. O quarto não está fechado, há portas abertas. O peão
protege, mas impede que eu veja além da película negra. Quando olhei há pouco
as cortinas, não via o que estava do outro lado. Ora o pano mexia, ora
fechava-se. Eu via parte do que estava do lado oposto, mas pensava que fosse
paisagem o que era amplidão *passagem*. Pensar em paisagem é trair-me; era ver
todos aqueles quebra-cabeças da infância – juntando, formava uma paisagem de
mil peças, lembra? Papai trazia jogos e jogos, enquanto eu quebrava a cabeça. A
paisagem é quebradiça como neurônios que jamais se tocam. Mesmo em sinapses, os
neurônios são paisagens, peças que não se beijam. A varanda é o oposto. Não é
paisagem, muito menos neurônio, a varanda-sem-palavras.
O tabuleiro de xadrez agora tem uma
defesa, o dragão da siciliana. Antes do tabuleiro ir ao chão, eu estava todo à
lá Bobby Fischer, um sorteio de cada lado, e os peões da segunda linha
intactos. Agora, as brancas continuam aleatórias, embora as negras estejam
alinhadas com o bispo em fianqueto, conforme ordena o dragão.
Dizem que essa defesa é chamada de dragão por ter semelhança a um composto
estrelar, uma constelação. Particularmente, esse nome é interessante não pela
constelação, mas pelo fogo aberto ao se retirar o cavalo *a velha boca aberta*.
A saída do cavalo vem como o vulto noturno, que chamam de sonho, que arrasa um
homem mesmo acordado, que chamam delírio. Assusta. Assusta e proclama o fogo
cruzado. Eu acho que já vi esse vulto outrora, mas acordado, não me recordo
bem. Todavia, o arrancar de minhas vértebras, a passagem pelas entranhas (isso
que fui gritado) – eu já presenciei coisa parecida aos seis ou sete.
A encruzilhada abre caminhos.
– Nega, meu amor, esses quartos estão
abertos. Quando cheguei, as portas estavam escancaradas, assim como eu as
deixei, mas lá dentro havia uma película fina de cor preta, dentro de cada
quarto. Estava fechado. O peão lê jornais e livros velhos, regado a vinho. O
peão abre caminhos. Eu os coloquei assim, Nega. O peão abre a película negra
rumo ao acaso da varanda. O peão não precisa de palavras, pois que já habita o
silêncio universal. No xadrez, a qualquer momento, o peão é capturado para dar
passagem a outras peças mais potentes. O peão abre caminhos. O peão é o Exu do
xadrez e do quarto, que agora está aberto, minha proteção, portanto.
Meu tabuleiro tem as peças negras
contra o vulto, que é de jacarandá e palavras. As palavras berradas no sonho
eram tão intensas que ouvi o branco *o sonho era branco, o vulto era
branco-gelo*. Meu peito não suportaria outro grito, o grito surdo do vulto, por
isso a siciliana é a minha melhor defesa. À noite, os peões abrem caminhos,
enquanto o dragão prepara-se ao sopro do inferno. De onde vem essa coisa de São
Jorge e dragão? Pode ser mais um desdizer da defesa siciliana, porque o fogo do
dragão só aparece quando o cavalo desloca. As palavras vultosas são
ensurdecedoras, contudo, após ouvi-las, não há distinção de cada fonema. A
varanda não tem fonemas, não forma morfemas, muito menos palavras. No som da
varanda não há texto: a sintaxe e a semântica são iguais a zero *Inicialmente o
esquecimento, apagamento de qualquer reminiscência, após, um salto, uma invenção*.
A varanda não é um número e nem encerra
uma palavra. Zero é nada, é um interstício, um intervalo entre a sala de
jacarandá e o restante da casa. A varanda não conclui, não finaliza a casa.
Ponto do meio, um meio que há sempre outro entre ele. A varanda está entre, um
meio entre os demais. Não há começo, nem meio exatamente, não encerra o fim.
Preciso descobrir esses quartos,
todavia, enquanto necessitar especificamente de algo, algo será ausente de mim
*o essencial é aquilo que ainda não há*. Preciso dos quartos da mesma forma que
exijo dos jornais uma notícia vermelha, mas queria tudo como o que vivi na
varanda – impossível. A varanda é o que há independente de qualquer
um; sou eu (dos outros) em mim. Os quartos, enquanto externos, enquanto objetos
puros, não trazem nada além de quartos. Os percevejos, as aranhas, serão
aranhas que dirão tudo diante das palavras: p-e-r-c-e-v-e-j-o/a-r-a-n-h-a. Os
nomes são peças de um alfabeto morto, uma língua morta como as células que
morrem ao tomar café quente e açucarado (prefiro café gelado e com menos
açúcar), porque o esquecimento é a marca registrada de quem morre. Não existe
relembrar: relembrar é sempre *sempre!* uma língua de novo. A morte é que nos
arremata de supetão para impor uma nova vida, uma nova vida que é tudo bulhufas
de vidas de outros. A morte não se impõe aos mortos, uma vez que ainda não foi
esquecida – talvez só o ato de morrer seja vida, vida por excelência. A morte é
o instante do grito do vulto que arrasou meu peito; a varanda é a vista sem
palavras, que nem jacarandá na floresta. Não quero os quartos, ainda preciso
deles.
Esse tabuleiro é uma arma. Os jornais
que chegaram são armaduras contra a intromissão do vazio. Ler as notícias me
deixa ligado, interligado, com um início e meio e fim – fim que não existe.
Fim: uma palavra sem existência como todas essas palavras temidas coletivamente.
Mas saí da cidade, da capital, para me ocupar do silêncio propiciado pelo
retorcer do cerrado. Essas árvores daqui são pinturas barrocas naturais e
deveriam me tragar daqui. As árvores do cerrado me fizeram repetir a mesma
incompetência da capital *o cerrado tem árvores do ponto do meio*.
A varanda-sem-palavras foi a
experiência necessária para que eu pudesse dizer da falta de necessitar de algo
especificamente: precisar algo é chegar a um ponto final *para afastar em
seguida*. A necessidade é o oposto da vida-sem-palavras da varanda, está dito!
O vento é o que nos toma por completo, o vento de outro lugar também sem
palavras, da paixão. Vou dizer ao contrário: não preciso de um novo romance. O
contrário de novo, ou seja, velho, então, dizendo ao avesso – preciso de um
velho romance de novo. Ainda as palavras estão intermediando o inexprimível
*pura futilidade*. Não preciso de um velho romance. As palavras são
correntes que aprisionam a alma. A prisão que meu tio se submeteu por
contrabandear tabuleiros importados foi à consagração dele como enxadrista. Um
bom enxadrista, excelente *ideal, ideal de enxadrista*. As palavras devem ser
correntes que aprisionam a alma para libertá-la. Os jornais abertos estão do
lado de lá; os livros, ainda que de capas lindas, estão do lado oposto *a
repetição demarcar o inominável, não?*. A varanda continua no mesmo lugar, mas
não irei a ela, porque tudo seria palavra do desdizer. Se eu disser palavras,
as coisas serão palavras e só. Só haverá varanda-sem-palavra se eu não estiver
ao alcance dela – somente não dizendo é que as coisas se tornam, tornarão, sem
virar ao avesso, sem tornar excesso.
- Nega, queria falar com você.
Do querer: – a fala recusa traduções.
Do desejo, o oposto advém. Não vou dizer o contrário. Não vou dizer! Digo
somente quando me recuso a dizer, e, é mesmo na recusa que comparece o que iria
a ser. Enfim melhor seria dizer – digo NADA, um desdizer. Digo nada como quem
diz algo que é nada; a recusa está no presente; a ausência é nítida e não digo
o contrário. Não digo o contrário, já que o que digo já é o avesso da
linguagem: digo NADA. Só há linguagem quando NADA diz além.
– Que tal você voltar à capital,
Maria? Sim, você vai e eu continuo nessa casa *causa*. Você vai e eu fico aqui,
ainda com a necessidade da sua presença, com certeza; os objetos ainda externos
(xadrez, jornais, vinho, jacarandá) são seus dedos fora da mão, são! Mãos sujas
de dedos colados à mão.
Amor-de-palavras
(Cap. III)
Maria saiu dessa casa velha em prantos.
Mas o que disse eu? Apenas para ela ir à cidade, afinal, ficar aqui comigo deve
ser insuportável. Insuportável. Ela chorou e não gosto de ver lágrimas
cristais, causam arrepios intoleráveis. Quando me despedi dela, no aeroporto,
ela não chorou – isso me confortou para passar esse mês à sós. Não quero chorar
também. Sangrar alguém para lidar com o próprio mal-estar é de profundo mal
gosto.
Sangrar em lágrimas porque Maria
partiu. Partiu o espaço cinza que nos unia *o café não será frio, nem quente*.
O avião nessa hora decola para dizer adeus ao Deus de nós, que é. Há entre mim
e ela um nó de peito, mas ela me permanece enxuta no varal do tempo,
tempo meu.
O café que tomaria agora, nesse fim de
tarde, seria feito por ela. Não há sequer o olhar dela perante minhas pernas insossas,
que não param de mexer inquietas. Do olhar: meus olhos querem sangrar como
aqueles olhos, por-mim-por-ela.
Esse peito que geme o vulto do grito, o
silêncio, a varanda *não chora palavras*. Quando ela saiu, lágrimas caíram.
Meus olhos silenciaram, mas em minha costela opera um quê sem razão, desmedido
de vulto. A razão lançou-se adiante – fico na inquietude tomando notas de olhos
alheios, olhos meus também.
Eram olhos alheios, dois, que eram
meus. Não tinham a cor dos meus, nem sei se tinham cor. Eu estava do lado de
fora, minhas retinas não refletiam um centavo. As palavras intervêm nas
lembranças, inscrevem lembranças em epitáfios de vivos. Dos olhos, uma cor: a
amplidão parece atravessar as costelas. A cor será. Um dia, vou ter sangue,
corpo, costelas. Um dia, sentirei coisas sem-nome-sem-palavras, e Maria voltará
na surpresa do acaso. Eu quero. Enquanto o querer é um desejo, será um quando
sem culpa.
Queria poder sentir um novo amor. Um
novo romance. Quero um novo amor, que sangre sem avisar. Que arrase minhas
vértebras, arranque minha costela, que faça uma nova mulher. Mas ainda quero –
se quero é porque não sou. Um quando, que será a vez num instante, mas é
futuro. Um quando, que não permitirá um querer, porém, serei todo, todo amor.
Sem quando, tudo será o próprio instante da beleza *o futuro é desabitado, o
hall do que não há*.
Não há amor quando o desejo é marca
indelével. Um pai devia ensinar isso aos filhos - meu pai sabia bem disso,
embora não tenha atrevido a tecer comentário nenhum sobre o desejo. O desejo
demarcava o espaço do meio na minha casa, entre o que sentia e um quê de
propriamente dito. Amar é toda excomunhão sem motivo. É permitir o proibido a
quem já ultrapassou a barreira do “não”. O amor é o que não tive *o amor é um
quê do que não há*.
Eu dizia a ela, Maria, que a amava. Eu
reclamava do café como quem diz que quer amar novamente. Nosso amor estava um
café morno, um dia cinza, porque era todo palavras. As letras dos jornais, dos
romances, eram o nosso melhor, um amor empalhado numa mesa de jacarandá. Meu
amor era um tabuleiro montado aos moldes de Fisher, peças aleatórias sem
história *um animal virtual*. Eu salvava o amor bebendo o café já frio; lendo
as capas dos jornais. De quando em vez, bebia o café quente, no gosto das células
mortas eu refazia um novo momento, meu novo romance. Eu alimentava a boca
terrível do amor com tudo isso: xadrez de Fisher, jornais, livros, café e a
mesa de jacarandá. Meu amor foi alimentado por palavras. Amor é intraduzível *o
fracasso das letras sem plateia*.
O xadrez de Fisher não é xadrez; é o
amor de Robert James Fischer,
o "Bobby". Esse grande campeão mundial, um gênio da
história do xadrez, além de conhecer a fundo as aberturas tradicionais,
desenvolveu um novo xadrez em que as posições das peças eram dispostas através
de sorteio, era o amor de Fischer *aposta diária sem razão*. Somente os peões
ficavam na segunda e sétima linhas, o restante era via sorteio. Fiz da minha
vida um perpétuo desejo de amar *um empate perpétuo, repetição de três lances*.
Minha mulher voltou à capital.
Em cada porta, um peão. O peão saiu da
linha de frente do xadrez e ficou à espreita, à porta, tal como Exu na
encruzilhada. O peão não protege o quarto, mas abre caminhos, liga minha
matéria ao imaterial do quarto diante de um portal imenso, que me conduz à
película negra do interior do quarto. Ainda há pouco, coloquei mais um peão na
porta de entrada. Já são oito peões: sete nas portas abertas de cada quarto e
um na porta de entrada – abra os caminhos da varanda (o banheiro daqui não tem
portas). Letras me perseguem. Não é a Nega, não é o xadrez de Fisher ou jornais
e livros e vinhos, mas, tão somente, as palavras. Elas estão em todos os
lugares e não precisam de Exu para abrir caminhos. As palavras fecham os
caminhos, diante delas não existe portal algum.
Quando pequeninote, eu não entendia bem
a língua portuguesa. A compensação resume minha vida: minha família compensou a
carência de palavras pela via do excesso. Estudei pelo método japonês de
aprendizagem, Método Kumom, e trago de lá a disciplina de quem
escreve seis horas seguidas, seis horas de tudo que não tem a ver com a própria
existência. Os métodos ensinam a afastar-se da própria existência. Lia como um
condenado pelas letras – escrevi quinze livros para tentar abortar o excesso de
mim, contudo, abortei a mim a mesmo. Lia, escrevia, mas permaneci escravo do
dito.
A palavra amor me deteve por vários
anos. Xadrez de Fischer, mulher, jornal, livro, café. Aprendi não a jogar
xadrez, mas o xadrez das palavras, uma tranca *Exu*. Não jogo xadrez com
adversário reais, porque os oponentes não entendem a crueldade das palavras.
Talvez eu não ame de fato, já que dizer “amor” já reduz o fato ao impossível. O
desdito é o que há.
...
Sair da capital rumo ao interior não são
promessas, mas um pedido *uma aposta*. Saí da cidade sem saber o que me
esperava no escuro, a penumbra dessa casa é tão terrível quanto habitar esse
corpo pastelão, quanto escrever quinze livros torpes. Se o soubesse como era
viver aqui, talvez, tivesse continuado escrevendo romances pastelões dentro da
minha casa. Sair da grandeza da cidade, da masturbação que é viver sendo
elogiado, e entrar no marasmo de uma casa escura, sem café, sem ninguém, apenas
o vulto da noite, a tenebrosa e pacata noite. Ao marasmo infernal desse lugar,
sem a obrigação de estar aqui, mas permanecer longe da correria insana do
dia-a-dia. É o oposto. Quando o oposto se presentifica é um tanto desolador *a
crueldade do óbvio*.
Estive puro na palavra ‘elogio’. Eu me
resumia na palavra esquecimento – esquecer-me dos elogios que me eram feitos.
Sair da minha casa, casa de condomínio de luxo, foi um atravessamento. Não foi
através da palavra que cheguei aqui (esses pensamentos estão me consumindo).
Estive em palavras, do meu nascimento à vida adulta. Na verdade, nunca cheguei
à vida adulta, porque havia uma palavra (várias palavras) me separando da
experiência. A experiência esteve subjugada ao dito, previsto.
A previsão é um estado de coisas que
possivelmente não chegará a ser. Fui um desejo esdrúxulo de sucesso. Era desejo
de. Isso é grande agora. Não há formas para dizer que eu não era um desdizer
que repetia do intraduzível. Pecado. É um tropeço fazer da fantasia uma vida,
uma atrocidade. Fui atroz comigo. Mas ainda o sou, porque digo que fui. Ah, eu
separo meu passado do presente. Eu sou atroz comigo. Serei honesto o dia em que
não disser o que sou – serei.
Maldição. Sou todo amaldiçoado.
Não há vida alguma em quem diz alguma coisa. Não quero dizer, não quero falar.
Pois as lágrimas de palavras são frutos de expectativas, carne sem tempero. Eu
desço aos trilhos do caos. Direi sim, um dia, mas preciso de um NÃO forte,
capaz de romper com esse ostracismo. Essa casa, ao inverso do condomínio, é meu
não.
É, Nega. Maria, não há nada em você
agora que cause identificação. Nem eu mesmo consigo me identificar com essa
história. Ela estará em outro lugar (terá esquecido minha última palavra),
entretanto, ela pertence ao além da palavra pensada. Então, o problema não são
as palavras, são os pensamentos que se inscrevem através delas. Jamais. As
palavras são expectativas frustradas de um passado presente.
Maria estará fisicamente em qualquer
lugar, mas certamente os atos a convocam como no instante que a conheci. Numa
premiação havia alguém que havia lido toda minha escritura. “Uma retardada!”,
pensei. Com o tempo, entretanto, passei a encontrá-la em diversos espaços
*poucos frequentados*. Ela será então isso que não é, meus livros. Porque
desdizendo ela parece presentificar. Ela é porque nada diz.
Parece que minha mente desmente tudo
que eu penso. Eu estou sem saber, mas considero o contraditório. Esses quartos,
sete quartos, no sétimo dia de descansar. Mas haverá um oitavo. O sétimo
preanuncia o oitavo. Ei, eu não quero pensar. Eu não sou tolo de desejar um fio
sequer. É maldição. MALDIÇÃO. Eu sei que haverá um sétimo, um oitavo, e aguardo
como quem morre a cada fim de dia - a terra foi criada em seis ou sete dias? Um
dia, uma morte, uma noite, uma vida sem fim. É perturbador saber que um novo
dia está por vir. Tomo nota. Desminto meu dizer. Há algo além. Algo nisso tudo.
.O que houve, portanto? O xadrez já me
é um passado alheio. Os jornais estão na mesma página (imagino eu), já que não
vejo letra alguma, permanece distante. E, ainda, os livros estão na mesma casa
maldita, essa casa de fazenda. O livro deve ter seu brilho de varanda no além
da palavra, além da consolidação do significado da palavra. Esse livro maldito
tem um mal no dizer, que deve ser nada, apenas uma tola indisposição que agora
me abate. Nada, furo universal. É espelho refratado em outro espelho.
As cortinas estão cada vez mais
abertas, não perfazem um véu pela vidraça e o romance está descortinando. Viver
é um descortinando *na bíblia consta a passagem do véu espatifado, Velho
Testamento*.
Mamãe brincava comigo de bem-me-quer.
Ela quis meu bem: ansiosa, desejosa de um filho que a tirasse da mesmice da
vida de esposa. Era a hora de ela se ver no espelho, uma menina que não fui. Eu
seria uma menina. Uma moça bonita que usaria laços de fita e transaria
escondida, atrás da igreja. Eu seria a expectativa dela *o outro dela*. Eis-me!
Sou o furo de um desejo. Mas mesmo diante de minha severa virilidade, uma mãe
me prefigura. E eu digo isso agora. Digo, porque é tudo o que me resta. São
esses pensamentos que me consomem: tudo que sou. Não, serei meu próprio não
dizer, quando a necessidade falecer na esquina debaixo. É no devir que o
outro se desmancha. Minha fique com a filha que não teve... Que vá às cucuias!
Um-quarto-a-mais
(Cap. IV)
Se fosse uma questão de ritualizar a
vida, eu já teria adentrado os quartos, cada qual um ritual, mas não é tão
simples assim. Eu ainda não entrei em quarto algum por motivos escusos, que não
cabem palavras. Nem tudo exige explicação; nem a mais bela pintura é capaz de
traduzir o incognoscível. E não me tome como insensível. Claro que é um ciclo
de vida como nascer, crescer e morrer: sala e cozinha e banheiro. A vida é
mais, sempre um-a-mais. O ritual da vida trapaceia a existência, um sorriso,
uma piada diante da seriedade. A passagem pela proposta do ritual, a mudança
através do ritual, não reproduz a vida, a existência. Ritualizar é fazer
símbolos de palavras – evitar o sentir, a vivacidade do devir.
Ainda não passei pelo ritual da vida.
Fiz da vida símbolos que eram rituais obrigatórios. Eu passei pelo ritual da
vida, porém não vi nada e botei palavras para não lembrar nada. Até mesmo as
palavras que foram usadas para esconder a vida, eu as esqueci, as últimas
sempre foram esquecidas. Eu falo e não entendo. Eu passo pelo ritual de
passagem, a passagem ao nada. O quarto ao lado é por onde começarei. Se ainda
não entrei no quarto (se deixei um peão, um vidro de vinho e um jornal), talvez
seja porque eu quis atribuir aos objetos o que não entendo, um pouco do meu
corpo. O ritual de passagem é a limitação de minhas percepções.
Quando penso nos rituais, primeira
namorada, primeiro emprego, primeiro porre *primeira buceta*... Não me vejo em
nada. Ritual? Eu não passei por nenhum. Eu me esquivei de tudo que me fizesse
adulto, maduro, eu me esquivei dos últimos capítulos. Releguei a vida a algo
que botasse palavras-cobertor.
A varanda não foi traduzida, mas uma
dor imensa me faz querer botar um símbolo. Começa a sangrar um peito sem
lágrimas – Maria foi embora. Eu sempre a usava para desabafar essas coisas sem
nome. Ficará o peito gemendo como portão velho. Não há palavras que traduza a
dor suave do peito, nenhuma garantia. Esse corpo pagão diz dos limites
prefigurados.
– Caralho, cadê as pastilhas? Hidróxido
do cacete. Meu estômago dói, caralho.
...
Esse quarto será também tudo que não
vi, não deixarei a película negra do quarto perturbar meu sono através de
vultos. Mas o vulto foi o melhor de minhas costelas, de minhas entranhas. O
vulto me resgatou ao inominável da varanda (desde que aqui cheguei, foi a única
coisa pertinente que me ocorreu).
Fui ao primeiro quarto e cheirei o
gosto sombrio. Atrevi, e meus pés adentraram o quarto, um cheiro de amor
esquecido, velho. Não há luz, pensei que fosse branca a cor do amor, que
tivesse um lugar para acender a luz – nada. Meus pés deslizam pelo interior do
quarto, escuridão delicada. Uma cama para o sono, um armário, uma pintura, um
quadro – nenhum objeto que desvie a sutileza do espaço escuro.
Um quarto de ausência de palavras.
Maria está como quem é todo esse espaço. Ela está como uma bolha que perfaz
toda a minha silhueta.
Não há objeto algum dentro do quarto.
Ele não tem nada a oferecer, mas é tão confortável deslizar a cada centímetro.
O escuro é meu sono sem vulto. Todo vulto, toda imagem desfigurada deve ser
isso que cheir’amor. Vou deitar aqui.
Uma-questão-a-menos
(apresentação)
(Cap. V)
Dormir nesse quarto-sem-sonhos foi regurgitar velhos problemas. Cheguei aqui na dinâmica de escrever aquele livro do editor, em forma de um romance histórico. Coletar historietas desse povo daqui seria até interessante, mas para jornalista. Minha resistência é ficar aqui. *Explorar cada centímetro do quarto, da sala, do banheiro, da mesa de Jacarandá, do xadrez, dos jornais é explorar tudo que não é varanda. Meu problema parece ficar mais claro, o que me cria mais problemas*.
Se eu continuasse desconhecendo meu
engatinhar, talvez, estivesse mais próximo do que busco. Não quero o livro do
editor, meu dilema parece estar um andar e-mail. Parece mesmo que quanto mais
tento me aproximar, mais distante torno. A questão é não conseguir dizer o que
quero. Recordo-me de um verso de algum autor desconhecido, que dizia: "Só
ama profundamente quem desconhece o amor". Talvez por isso até agora só
desdigo numa produção insana. Não quero as palavras, os quartos, a casa. Nesse
momento toda forma de enunciação concentra-se na varanda. E a varanda não é
resumida em linhas (poucas ou muitas), não há mesmo forma alguma de atingi-la.
E é isso que me convoca; é isso que me faz rasgar-me ao meio em busco de outro
corpo que ultrapasse as palavras. Quando eu era pequenino, uma professora
(dessas imbecis que acreditam no poder do léxico) disse que meu problema era a
falta da palavra certa. Essa professora diagnosticou meu problema como “falta
constante de palavras”. Nenhuma imbecilidade maior.
Minha infância foi repleta de
diagnósticos. *Quanto maior o número de diagnósticos, mais se distanciava desse
quê*. Foi tentando me compreender que fui levado ao psiquiatra ainda aos oito
anos. Ele disse à minha mãe que meu sofrimento chamava-se depressão e, ainda,
voltou-se especialmente a mim para dizer que o apelido disso era 'ansiedade'.
Eu era ansioso. Descoberta. Ansiedade-por-falta-de-palavras, disse mamãe. Minha
mãe tinha também um quê de burrice, porque sempre fazia disso meu rumo. A
verdade da infância é que a criança não existe um centímetro sequer. E fui
estudar línguas. Estudei o quanto pude à procura do que fosse lá o que fosse -
línguas dos diabos! Era a cura desse mutismo. Cem línguas e nenhuma solução.
*Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não uma
solução*. A mania da genialidade também assolou minha porta. Hoje não entro em
quarto nenhum. Entrei nesse quarto (o primeiro) e meu problema não foi
resolvido, talvez ampliado. Quando fui ao psicólogo, ele me disse que tudo
seria logo-logo resolvido. Um ano e nada. Não fiquei ouvindo as baboseiras
daquele que me trazia a maneira certa de viver. Para ele, o problema já não era
a falta de palavras, muito menos se chamava depressão. Meu problema seria
denominado “repressão”. Esse idiota queria (insistia) que eu dissesse o que não
sabia. Ele queria a todo custo que eu falasse do que me perturbava.
O problema básico da minha infância era
que nada me perturbava – fazendo com que tudo se misturasse nas minhas
decisões. A falta específica do que reclamar (reclamavam por mim) me colocava
em situação à lá Fischer, na completa desordem. Minhas peças não tinham um
lugar certo para amanhecer. Meu café, desde cedo, era gelado, quente, morno
(açucarado). Hoje, somente agora, prefiro o café gelado. Talvez a questão tenha
sido a falta de elaboração. Fiz Letras, um curso que ensina a como não ser
escritor. Fiz o curso de Letras para aprender a dar nome ao que não sentia.
Persigo essa palavra que nunca vi. Os textos, os livros, todos os livros que
escrevi não há nada além de uma visita ao quarto, uma ida ao banheiro. Nenhum
traz a marca da varanda, o ponto do meio, no interstício de um novo ponto. Nada
me convoca e, por isso mesmo, fico preso a essas bugigangas inúteis. Amarrado à
mesa de Jacarandá.
Essa vida até agora foi uma vida de
várias mulheres, de vários cheiros. Sempre gostei de cheirar as bucetas de
minhas mulheres. A mulher que mandei embora cheirava branco-gelo. Mas já
cheirei uma azul-maça-sutil, que me deixou num desses estados de torpor (acabei
dando um nome porque me esqueci completamente do odor). Incrível é que toda vez
que me vejo com um cheiro diferente *os cheiros substituem nomes?*,
eu me desfaleço, procuro cama. Eu procuro as peças quando a posição do
tabuleiro parece insolúvel. Eu procuro um novo cheiro quando uma buceta tem um
novo odor. Eu procuro palavras e deixo a verossimilhança para os críticos.
Quando o gosto do vinho some (sempre sempre some), eu sugo atroz as palavras e
defino o que senti. Não sinto nada depois de uma tragada de vinho. As bucetas
existem para por um ponto onde não há lembranças. Pode ser. Pode ser que
enquanto se lembre, não seja mesmo possível escrever uma linha sequer. Talvez
por isso todo livro que escrevi tenha ficado borrado, porque escrevi lembrando
passo a passo, planejamento otimizado do início ao final. Se o que há aqui
fosse um livro, não seria possível saber se haveria de ter um desfecho. É isso
que no desdizer procuro sem busca alguma. Porque falar de vinho, de cores, de
xadrez, de família, de bucetas...
Falar de tudo que se lembra é de
profunda idiotice. Exatamente por isso que não desmancho meu tabuleiro. É por
isso que me revolto quando cedo à inconstante fome de vida e bebo o líquido. Eu
sempre sucumbo no final do vinho. Odeio o vinho quando o engulo. O vinho não
foi feito para ser engolido. As uvas líquidas são mesmo para viverem de um lado
ao outro da boca. Certa vez resolvi praticar uma grande heresia: bebi vinho na
frente dos amigos de uma de minhas mulheres * Era Periquita*. Tomei
de um gole, já que estava numa incompreensão total perto de tamanha tolice. Os
amigos de minhas mulheres são profundamente idiotas. Nenhum soube ouvir a
língua dos cães, e todos, sem exceção, falam línguas mortas obsessivamente.
Minha heresia não foi submeter a minha presença aos tolos, mas, tão somente,
beber o vinho como bebiam os amigos de minha mulher.
...
Meu nome é Marques Wilke Devívido. Não
tem "Santos". Sempre achei de profundo mau gosto chamar qualquer
coisa dos Santos. Eu, ao contrário, chamaria Marques da Mãe, Marques dos
Livros, Marques Xadrez, Marques do Caralho. Sair de casa não é problema –
resolvo problemas de mortais, como, bebo, fumo e cago, embora prefira ficar em
casa mesmo. Entretanto, se eu fosse dar um nome para meus problemas (o que não
faço sem hesitação), chamaria de véu. O véu da cortina que me separa da
varanda. Os quartos não me perturbam um milímetro. Os quartos (os sete) tem
toda uma maneira própria de me olhar. O cheiro deles mistura constantemente à
cor sombria que perpassa as portas. E não me assusta.
Sobre a varanda-do-meio prefiro não
dizer prontamente o que passa ali porque não paro de pensar nela. Ontem quando
abri o véu da cortina e pisei naquele lugar eu não sei mesmo o que havia
além-aquém *amém*. Eu não tinha ideia e não tinha palavra. Quando o vulto me
visitou na noite antepassada, eu não vi palavra alguma. Meu desdizer vai num
rumo de não querer explicar o que passa no reino desabitado. "Reino
desabitado" foi posto em um livro de contos que escrevi, embora ali não tivesse
nada a ver com as experiências sensitivas. Deve ser mesmo diante da falta de
lembrança que a palavra comparece para dizer alguma coisa daquilo que não se
diz. Mas quando se lembra do que aconteceu, uma lembrança de fato corporal, aí,
sim, as palavras devem são engolidas pelo soturno. Na varanda, eu era visto. Eu
era visto do meu corpo para lá. O cão que corria atrás do preá, corria também
um olhar à varanda. O preá corria e me era visto. Eu ainda não disse nada,
porque tentei dizer demais. Eu sou dito quando sou visto visão além.
...
Vamos lá: até agora o que sei é que me
chamam de Marques Devívido *constantemente omitem o "Wilke"*. Escrevo
livros para a editora e preciso coletar histórias desse povoado, Santo Antônio
de Goiás. Sou para lá de prolixo * esses pensamentos se movimentam de
lá-pra-cá*; sou casado há quinze anos com a mesma mulher cujo nome é Maria
(engraçado, não decorei o nome completo dela). Simplesmente gosto de Fisher e
adoro a defesa dragão da siciliana. Não jogo xadrez com ninguém vivo, mas me
desafio a cada momento analisando *jogando* contra as partidas clássicas. Gosto
de vinho enquanto está na boca e odeio o vinho quando sucumbo – quando o bebo.
Estou há um mês nesse sítio e até agora só entrei em um quarto. Tive um sonho
com vultos e não tenho medo dele *os vultos hiperbolizam a própria imaginação*.
Passo por uma problemática: os nomes aumentam, entretanto não os sinto como
verdadeiros. Não acho que palavra alguma encerre algo, ou alguém. E não se
trata da arbitrariedade do signo. Não. As palavras (mesmo encenadas e cheias de
expressão) dizem menos que um centavo. E o pior é que todas as línguas se
prefiguram como mortas. Não há palavra que dê conta de traduzir isso. Vou ao
quarto *quando isso é possível* e durmo na escuridão que é sem sem palavras.
Vou ao quarto e durmo.
Mas sei das querelas de infância.
Quando penso nos pensamentos de criança não vem palavra alguma. Já ouvi teorias
ridículas que dizem uma cem-coisas da infância, entre elas aquela que diz da
amnésia infantil. Não há nada mais bobo que isso. As crianças não apagam nada,
ao contrário, os eventos ocorridos ali são apagados pelo adulto, que os toma
por completo. Não me vem palavra alguma quando recordo do rosto da Carla
*garota que foi pedida em namoro aos quatro anos de idade*. O rosto da Carla,
que era doce branco-nuvem. Nada vem quando me recordo do demônio da mãe da
Carla sugerindo "criança não namora!" O caralho. O instante ainda
prevalece. A velha amaldiçoou o que tentou dizer. A mãe da Carla não
nos deixou namorar *família de interior, Buenópolis, Minas Gerais*.
Depois que cresci aprendi a beber vinho
sem engolir o líquido, embora meu fracasso seja constante. Quando cresci, dei
que ficaria com a Carla de quatro *quatro anos de idade*. Fui a Buenópolis à
procura dela. Não queria palavra que fizesse lembrá-la de uma forma invertida,
traída. Essa cidadela do interior é pequena como cu. Procurei por ela e lá eu
vi uma Carla de vinte anos. Não tenho a Carla de quatro, muito menos aquela de
quatro anos. Novamente o velho gosto de traição me carcomeu o fígado; ela,
Carla-de-quatro-anos, nada tinha a ver com quem via. Vinha uma mulher de bunda
gigante *as bundas grandes com celulites podem ser interessantes, uma vez que
parecem querer esconder algo ali, entre cada furo, um novo furo que há*, mas
não era quem procurava.
A professora de português da
sexta-série fora minha primeira médica. Ela diagnosticara meu problema que hoje
contesto. Contesto sem uma hipótese melhor a me ofertar. Sei que não são
palavras que preciso. A varanda, afastada como é. A varanda que se afasta da
mesa de jacarandá é algo instigante. Sempre tive nojo de textos com orações
curtas, rápidas, repleto de ponto final. Parece que o autor não aprendeu a
coordenar as orações. Ir à varanda é impossível *ao menos agora* sem
ponto final. A cada passo um ponto, que me encerra na professora de português.
O médico também do contradizer. Se o ponto final interrompe um fluxo,
interrompe um fluxo que ora não me faz pensar, ora somente repito. O ponto
final é fundamental na ida à varanda, e mesmo pensando cá no médico, na
depressão, no caralho. O médico ouviu falar que eu não saia de casa, não saio
mesmo... Para ele isso era resultado de um suposto mal-estar cujo nome ele deu
de depressão. Mas ainda não encontrei mal-estar nenhum. Não sinto essa coisa de
angústia *entrada no latido dos cães*.
Eu tinha uma namorada que morava
*namorada e morada prenunciam algo?* no Novo Mundo, um bairro de Goiânia. Eu ia
vê-la toda sexta-feira, antes, porém, parava na Anhanguera, um bar por ali, e
bebia oito doses. Ela dizia que eu era alcoólatra *não se ama deus nenhum*, e
cuidava de mim. Ia com oito doses observando os cães. Eles sempre estavam
embriagados a ladrar constantemente. Era de praxe nessas sextas-feiras eu
enxergar um cão por entre os olhos caninos. Eu também os ouvia *a língua viva
canina*. Não tenho palavras para dizer daquilo que me ouvia, que me via; do
corpo quando brota o torpor há sempre um quê de maravilha. Eu ouvia e era
ouvido, carro nenhum soava naquele momento.
Lendo sobre a Nigéria *era um
livro que o editor pedira para combater o racismo*, eu saquei certas nuanças
para lá de instigantes. Os povos Iorubas topavam com certas divindades que os
tomavam por completo. O cão estava ali, as árvores ali. Eu não quero a palavra
que diga o que me ouviu naquele momento. A varanda sem jacarandá também me
ouviu *no cachorro que corria atrás de um preá assustado*, também me ouviu
desde o momento em que o véu da cortina (os olhos da casa) transpareceu.
Minha doença é a falta de
palavras *poliglota, mãe-do-céu*. Seu mal-estar é denominado, segundo o D.S.M.
IV, depressão *não sabe bulhufas do que seja mal-estar*. Angústia é o outro
nome disso que é o contrário. O fato *Doutor* é que nunca nunca nunca eu
senti coisa assim, como se diz. Tem um pé de jambo na casa que minha mãe morava
e antes de ela falecer eu subia o pé acima... Tem um pé de jambo, acho que vi
um ali, perto do cachorro que corria atrás do preá. Eu vi pássaros que não
participavam da composição, mas estavam como efeito coadjuvante.
Até quando vou manter um tabuleiro
aleatório aos moldes de Fischer, ao passo que, do outro lado, uma defesa tão
bem arregimentada? Até onde o marcador do word vai piscar à
procura.
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Do editor, o recado.
(Cap. VI)
A campainha do susto soou. Não espero
ninguém (Maria não seria). Até conto com a possibilidade de ser
arrancado desse torpor por ela, mas não agora. A campainha soa, grita, geme.
Não posso me aquietar, o barulho insistente retoma como batida cardíaca.
É do editor, o recado: “Já não é
possível aguardar. Ninguém do vilarejo foi entrevistado e há mais de um mês
você permanece nesse lugarejo. Todo dia alguém leva comida e nada de você
escrever (pelo menos nada me foi apresentado). Está precisando de alguma coisa?
É bom que escreva, melhor, é preciso que entreviste os moradores, que conheça
as origens da cidade, a relação com a Igreja Católica, com o campo... É bom que
não se atrase: duas pessoas estarão amanhã à sua porta para dar o primeiro
depoimento (pela manhã). A editora tem tempo contado para publicar o texto. Bom
trabalho!”.
Infelizmente terei duas pessoas no meu
encalço amanhã pela manhã – vou urinar à noite (enurese dos diabos). Quando
moleque, toda vez que ficava pendente algo para o dia seguinte, batata, eu
acordava ensopado. Preciso dormir (o sonho, o vulto. A espinha dorsal foi
revirada. Não como a primeira vez, porém a curva da coluna, um evento que faz
Marques Wilker Devívido ser arremessado ao chão). Que horas? Ainda não deve ter
passado uma ou duas horas. No Embalo novamente ao sono *não se lembra do
sonho*. Mãos aos olhos esfregando cada milímetro da retina, água gelada ao
rosto, a pé. A campainha.
As duas pessoas entram na casa
timidamente. Foram convidadas a sentarem-se à mesa, sentaram-se. Seus pais
vieram de onde? São Católicos? As perguntas, embora nada complexas, foram
elaboradas demoradamente. Uma última pergunta: alguma palavra traduz sua vida?
Os dois entrevistados sorriram simultaneamente. Não responderam e foram embora.
Para as respostas das perguntas elaboradas era mesmo necessário começar pela
última, porque, nenhuma pergunta teria sentido para além do questionamento da
palavra. O vulto, a varanda, o latido dos cães, o cão correndo atrás do preá,
sim, são valiosos numa perspectiva que não é necessário responder a última
questão. As pessoas que vieram à minha casa são Católicas, amam crianças e
cresceram nessa terra. Conversei com pessoas que usavam as palavras às
escondidas *não há caminho para casa, não há casa alguma*.
Luciana, uma garota que estava a
pouco aqui, disse que queria voltar para Minas Gerais. Ainda, que Santo Antônio
não teria sido fundada a partir da Igreja Católica, ao contrário, fora a partir
do plantio que teriam aglomerado pessoas naquele local. A Igreja Católica seria
apenas a religião daqueles que vieram explorar essa terra, jamais o fim de eles
chegarem *ninguém da História Cultural iria confirmar essa tese*. Eu, menos
ainda: o que foi dito à distância, sem nenhum afeto. Luciana disse que ouvira
de outros daqui, dizia ela, pelos cantos. Não é por aí. Luciana não diz algo
que a tome, que consome as entranhas. O vulto me tomou essa noite mais uma vez.
Certa vez li que os sonhos são uma
espécie de termômetro, ou seja, que um sonho recorrente seria sinal que algo
não ia nada bem. Contudo desde meninote nenhum mal me possuiu *gripe, dengue,
sarampo, malária nenhuma*. Meu mal é a falta de palavras, como dizia a professora
Jucimaria da sexta-série. Meu mal é depressão, como dizia o doutor psiquiatra.
Eu queria mesmo indagar alguém: se eu perguntasse ao psiquiatra (que não me
recordo o nome) se depressão é o mesmo que a falta de palavra. Se fosse
perguntado à professora Juciamaria: depressão é a falta de palavra? Eu sofreria
de dois males, que, como em um complô, conspirariam contra minha integridade. É
paranoia.
...
Minha mãe é essa da foto. O meu
tabuleiro tem mais afeto que se imagina. Aliás, a foto de minha mãe está no
verso do tabuleiro, basta virá-lo para notar que a foto está intacta. É minha
mãe ainda criança. Nunca gostei das fotos de pessoas adultas, parecem ser
falsas. Fotos não foram feitas para serem expostas por aí, sem critério. As
fotos é que nos arremessam às entranhas, as fotos de criancinhas *o imaginário
que forma o eu*. E se deve tirar mais que uma; é sempre uma foto apenas.
Tiraram essa foto de minha mãe e jamais o corpo dela foi tirado para dançar
novamente por uma câmera. Eu ainda não conheço a minha foto ainda, talvez
alguém já a tenha guardado por detrás de um tabuleiro de damas, não acho seria
digna de um tabuleiro de xadrez.
Minha mãe, Wirna, depois de ouvir o meu
primeiro diagnóstico, oriundo da professora de português, tratou de me
matricular em tudo quanto há de cursos de línguas. Não é à toa que conheço os
diversos métodos de ensino e resolvi cursar Letras. Essa escolha não foi
simplesmente porque gostava de escrever, ao contrário, já tinha ouvido que o
curso ensinava o estudante a como deixar de escrever. Minha primeira tentativa
de me curar *?* foi iniciar esse curso. Eu sabia mesmo que era preciso abolir a
obsessão da palavra, de escrever desmedidamente, o curso ensinaria a livrar-me
do meu sintoma – poderia mesmo ter me tornado um crítico, um pesquisador que
odeia literatura.
A palavra da busca continuava travada
num meio de peões *Exu*, poucas peças grandes. A palavra-busca sempre esteve no
cerne de um caminho que não conseguia seguir. O que havia antes da professora
de português? Essa é uma pergunta que sei que não devo me fazer. Naturalmente,
anteriormente havia outro cenário. Naturalmente.
Minha mãe tinha um nome próprio, o pai
não, senhor forte (jogo sólido com poucas possibilidades de intrusões). Wirna,
mamãe, era quem (nos poucos momentos) buscava acalentar minhas solidões. O pai,
embora presente, nunca assim foi chamado. Ele era o provedor, o provedor do
lar. Engraçado, amigo, descolado... Quando faleceu, estive no velório,
silencioso. De boca, já que minha mente desenhava palavras a todo o momento.
Logo após o pai ser enterrado, nenhuma palavra me veio. Quando virei às costas
à cova, tive o primeiro encontro. A força do vulto percorreu toda a espinha,
cada vértebra, passando pelo estômago. A topada não tem tempo certo, mas o
vulto passou a comparecer de quando em vez.
Eu nunca quis dar nome ao vulto. Mamãe
me levou ao Centro Espírita, mas toda vez que eu entrava no Centro André Luiz
havia uma palavra – tentavam aplacar o desespero com palavras. A professora era
retomada – busca como uma incógnita.
...
Ela era viciada em fotos. Mamãe
insistia em registrar todos os momentos sem pudor... Certo dia, diante de
convidados, alguém deixou escapar uma flatulência. Não deu outra, logo apareceu
uma máquina fotográfica para guardar o momento. Era sempre a mesma
justificativa: "Não se poder perder o instante!". Um saco. A
lembrança dos meus pais parece me fazer cair na mesma armadilha *falar o
óbvio*. É claro que minhas recordações estão atreladas à primeira casa. Na
verdade fui expatriado, de certo modo. Isso porque nasci em um hospital que me
abrigou por menos de quarenta e oito horas, e logo já estava noutro canto,
outra cidade - Buenópolis.
Essas pessoas vêm aqui e contam
histórias esperando a máquina fotográfica de mamãe *ou a benção do Papa*. Essas
pessoas estão fartas daqui, do olhar ensandecidamente mortificado dessas
terras, e, ainda assim, aceitam conversar comigo. Saco nenhum! Um pouco de
longevidade no que é narrado é fundamental, todavia essas lavadeiras trazem apenas
a roupa do corpo, do dia anterior. Queria algo de longe, uma energia que
consumisse meus nervos, uma história que pudesse me arrebatar tal como ocorria
na sétima-série: os romances de Pedro Bandeira me enlouqueciam. Não só. Li os
três volumes de "O estudante" (não recordo de quem seja)... Meu pai
precisou ir à Brasília para buscar o volume três. Na verdade, ele fez a viagem
por outros motivos (coisa de igreja), mas acabou comprando o livro que tanto
queria.
Como é triste o poder clerical da
crítica literária. Depois de mais idade, li um texto de algum puto crítico que
cuspia em quase todos os livros de minha infância. Pedro Bandeira, Adelaide
etc. eram somente agentes trabalhando para a Ditadura Militar, profunda falta
do que fazer. Eu penso todos os dias, esses putos seriam mais felizes se
escrevessem romances. Outra desgraça: Rubem Fonseca *pai do conto urbano
brasileiro* é massacrado por idiotas aprisionados na vida do autor. Buceta. Se
o desgraçado fudeu alguém ou não, não sei, mas o fato é que o puto escreve bem
que nem o diabo.
A sensação é que minha história está
correndo melhor, agora. Uma esteira em velocidade avançada... A merda dessa
casa me botava para lá de comovido. Os quartos (esses que não entrei)
permanecerão sem cheirar minha presença. E pronto. Esses romances que escrevi
não são de todo ruim. É mesmo uma merda tirar uma foto de quem está do seu lado
todos os dias? É assim, porra. Meus romances são fotos tiradas da mesma mesa
*há quem goste*. Imbecis. Ainda assim, ficar nessa casa por tanto tempo (sem
ver quase ninguém) também é uma fotografia incessante. É ver a mesma
merda.
VII (Outro ponto)
Acordei mais disposto. Ontem à noite, eu já anunciava certo bem-estar:
meus pensamentos estavam correndo livremente e essa casa não estava tão
impregnada de minhas coisas. Quando aqui cheguei, pensava que ficar só era a
minha salvação, porque vinha de uma correria danada. Se fosse tão fácil assim,
Zaratustra não teria descido da montanha.
Não sei fazer café,
mas me atrevi a botar a água no fogo e fazer desse chá um café. Um desafio.
Qualquer atividade desempenhada na cozinha é um tanto tortuosa, porém me
recordo que quando criança eu mesmo fazia meu leite com toddy. Era uma lambança só! Às vezes meus irmãos mais velhos também
pediam para eu preparar em maior quantidade... Tomávamos todos rapidamente.
Naquela época, eu não tinha a terrível obsessão de tentar me lembrar das
sensações. Bebíamos e logo estávamos jogando bola ou brincando de Playmobil.
Hoje, ao acordar,
aferi a pressão. Ok. Geralmente tenho pressão baixa, baixa mesmo. Tomei meu
chafé e abri a porta que dá para o quintal. Esse lugar é uma graça: galinhas
ciscam sem questionamentos, adiante, os porcos aguardam a lavagem. Ah, os cães.
Essa porta está localizada na parte oposta da varanda, enquanto de um lado
vê-se o horizonte (preás e animais mais exóticos, penso), do outro os bichos do
dia-a-dia.
Caminhei descalço.
Logo me lembrei de que queria ler alguma coisa. Além disso, meu estômago já
anunciava a ausência total de energia. Retornei rapidamente ao interior da casa
e comi uma banana que ali estava apodrecendo. Em seguida, com a porta fechada,
sentei-me à mesa e abri o primeiro livro. Veja só. “Assim falava Zaratustra”,
um romance que eu podia ter escrito se tivesse nascido antes do autor. Esse
tipo de pensamento fode tudo. Hoje, entretanto, não tenho disposição para estar
quebradiço. Vou lendo. Escrevo *escrevendolendo*.
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