CIANURETO
Há muito tempo não vou à casa de vovó, mas essa me parece uma boa oportunidade. Afinal, não é todo dia que ela faz aniversário, ainda mais, de noventa anos. O legal é que vovô aniversaria no mesmo dia - um dia, duas festas. Quando pequena, dizia a todos da minha vontade de ser como vó-ana, isso porque ela sempre foi dona de si, sabia cada passo que dava. Certo dia, numa confraternização de família, meu avô revelou que tinha uma amante - estava completamente bêbado. Vó-ana simplesmente curvou a cabeça dizendo que já sabia, que ela mesma havia unido os dois. É claro que ele fingiu não acreditar, mas todos ali conheciam a história. Acho vovó incrível de verdade! Mamãe, não... Ela sempre quer mostrar que não está bem, que precisa de ajuda. No fundo, morre de inveja de vó-ana. Vovó, calada como é, não entra nessa competição ridícula. Os mortais morrem querendo provar o que não são... Vovó é, e pronto, e acabou!
Hoje é dia de ir à casa de vovó! Já faz pelo menos três anos que não apareço por lá. Não por odiar aquele espaço, mas por ter que aguentar as paranoias de mamãe. Ela se apronta toda e quer que eu faça o mesmo. Odeio me pentear! Meus cabelos têm forma própria, não precisam de "forçação" de barra. Mamãe morre gritando que estou feia, enquanto papai tenta acalmá-la. Acho que ela adora ver o pai chorando: "calminha, Divina, calminha...". A tranquilidade do meu pai é um estorvo! Não suporto ver essas cenas, por isso refugio-me no meu recôndito quarto. Porém, hoje suportarei as insanidades de mamãe. Quem sabe não esqueço aquele patife? Ontem, o degenerado do meu ex-namorado, terminou sem razão e, ainda, por e-mail. Tem base?!
Entramos no carro e nos mandamos, não sem os berros de mamãe. A viagem de Anápolis a Goiânia foi repleta de queixas, sofrimentos, mas papai, tolerante até demais, tranquilazava minha mãe por alguns segundos, logo voltava a mesma ladainha. Saí de casa consciente dessa lamúria, era minha sina, já que não queria pensar naquele depravado. Ele sempre vinha à minha mente, de repente. Eu olho para o lado e passo a obsevar papai e mamãe. Na minha bolsa há bastantes doces e, é só lembrar do desgraçado, para me entupir de porcarias. Qualquer merda do mundo é melhor que aquele destrambilhado! Como que para silenciar mamãe, ou simplesmente para obter uma explicação sobre meus sentimentos, interrompo a conversa e pergunto qual a razão de eu não conseguir tirar o salafrário da minha mente. Papai limitou-se a dizer que é consequência dos quinze. Mamãe, não querendo se passar por alguém ausente, disse já ter vivido situação parecida, "isso passa!", e voltou às lamentações divinas.
Chegamos ao destino e, enfim, mamãe se calou um pouco. Entramos no apartamento, cumprimentei vovó e me sentei. Ali é assim mesmo, todos chegam se abraçam à porta e se sentam. Fazem comentários sem sentidos, comem, se cutucam disfarçadamente através das palavras "seu filho continua magrinho, magrinho...". Depois todos vão embora à francesa. Vovó fica sempre calada observando a ordem da casa, como um cão farejador. Aliás, farejar a dor é uma virtude de vó-ana, que sabe quem sofre mais, conhece bem as fraquezas de todos. Mas hoje chegamos mais cedo, não havia ninguém para abraçarmos à porta. Apenas vovó sentada contemplando o dia pela janela e minha tia Joana, a solteirona que cuidava de vovó e vovô. Minha família cumprimentou a todos, enquanto eu abraçava e beijava apenas vó-ana. Ela gostava de mim! Olhamo-nos profundamente, como quem diz um romance sem palavras. Sentada, pude observar todos os parentes, os mais diversos, chegando um a um. Alguns espalhafatosos, outros nem tanto.
Os convidados ficam sorrindo para dar o ar de festa, enquanto eu sempre os observo. São interessantes os mortais, mas ele, o sem vergonha, não sai da minha cabeça. Como um homem pode me deixar assim? É me perguntar essas coisas e pensar em vovó... Fosse como fosse, vó-ana faria tudo diferente. Olha só! Enquanto as pessoas não param de dizer que a vida é bela, que vó-ana está cada vez mais exuberante - ela simplesmente contempla a paisagem pela janela. Deve ser um saco aguentar toda essa gente! Tio João não vê a hora de ela bater as botas, quer dividir logo a herança. Esses dias, ligou lá em casa insinuando que devíamos provar que vó-ana seria incapaz. Sem vergonha igual ao desfigurado do meu ex! Vovó não, ela olha, contempla a todos com o mesmo tom, desde sempre. Nem me lembro do vovô, talvez por ele ficar ali deitado, inoperante. Será que entende alguma coisa?
Nos tempos em que vovô falava era tudo diferente. As festas eram festas! Comíamos, bebíamos... O povo ficava trêbado e acabava falando de amor. Não posso me esquecer dele, foi especial. Mas vovó vive e vive bem! Uma flor no meio desse deserto implacável. Olha lá, tio João falando que vó-ana é um exemplo de vida, "sempre amou a vida e ama!". Ah, meu deus! Mamãe até aqui... Reclamando agora de dor nas costas, sinusite ou sei lá o quê. Deve ser difícil: perceber que papai tem que dar atenção a tantas pessoas. Onde é que anda Lampião? Maria Bonita ficou desamparada! Ele não me sai da cabeça e não servem logo o almoço, que coisa! Ufa, lá vem tia-solteirona-joana. Tá tudo lá... Frango caipira, feijão tropeiro, milho, salada e, de quebra, muito sorvete...
Vou à forra! Como de tudo e ainda me lambuso no sorvete feito pela solteirona. Nossa, como tanto que parece ser vertigem esses pensamentos. Bucho cheio! Vovó-perto-de-titia-perto-de-mamãe-perto-de-papai... Nossa, vovó está caindo!... Ai, meu Deus! Vo-ana engoliu um comprimido de cianureto...
Hoje é dia de ir à casa de vovó! Já faz pelo menos três anos que não apareço por lá. Não por odiar aquele espaço, mas por ter que aguentar as paranoias de mamãe. Ela se apronta toda e quer que eu faça o mesmo. Odeio me pentear! Meus cabelos têm forma própria, não precisam de "forçação" de barra. Mamãe morre gritando que estou feia, enquanto papai tenta acalmá-la. Acho que ela adora ver o pai chorando: "calminha, Divina, calminha...". A tranquilidade do meu pai é um estorvo! Não suporto ver essas cenas, por isso refugio-me no meu recôndito quarto. Porém, hoje suportarei as insanidades de mamãe. Quem sabe não esqueço aquele patife? Ontem, o degenerado do meu ex-namorado, terminou sem razão e, ainda, por e-mail. Tem base?!
Entramos no carro e nos mandamos, não sem os berros de mamãe. A viagem de Anápolis a Goiânia foi repleta de queixas, sofrimentos, mas papai, tolerante até demais, tranquilazava minha mãe por alguns segundos, logo voltava a mesma ladainha. Saí de casa consciente dessa lamúria, era minha sina, já que não queria pensar naquele depravado. Ele sempre vinha à minha mente, de repente. Eu olho para o lado e passo a obsevar papai e mamãe. Na minha bolsa há bastantes doces e, é só lembrar do desgraçado, para me entupir de porcarias. Qualquer merda do mundo é melhor que aquele destrambilhado! Como que para silenciar mamãe, ou simplesmente para obter uma explicação sobre meus sentimentos, interrompo a conversa e pergunto qual a razão de eu não conseguir tirar o salafrário da minha mente. Papai limitou-se a dizer que é consequência dos quinze. Mamãe, não querendo se passar por alguém ausente, disse já ter vivido situação parecida, "isso passa!", e voltou às lamentações divinas.
Chegamos ao destino e, enfim, mamãe se calou um pouco. Entramos no apartamento, cumprimentei vovó e me sentei. Ali é assim mesmo, todos chegam se abraçam à porta e se sentam. Fazem comentários sem sentidos, comem, se cutucam disfarçadamente através das palavras "seu filho continua magrinho, magrinho...". Depois todos vão embora à francesa. Vovó fica sempre calada observando a ordem da casa, como um cão farejador. Aliás, farejar a dor é uma virtude de vó-ana, que sabe quem sofre mais, conhece bem as fraquezas de todos. Mas hoje chegamos mais cedo, não havia ninguém para abraçarmos à porta. Apenas vovó sentada contemplando o dia pela janela e minha tia Joana, a solteirona que cuidava de vovó e vovô. Minha família cumprimentou a todos, enquanto eu abraçava e beijava apenas vó-ana. Ela gostava de mim! Olhamo-nos profundamente, como quem diz um romance sem palavras. Sentada, pude observar todos os parentes, os mais diversos, chegando um a um. Alguns espalhafatosos, outros nem tanto.
Os convidados ficam sorrindo para dar o ar de festa, enquanto eu sempre os observo. São interessantes os mortais, mas ele, o sem vergonha, não sai da minha cabeça. Como um homem pode me deixar assim? É me perguntar essas coisas e pensar em vovó... Fosse como fosse, vó-ana faria tudo diferente. Olha só! Enquanto as pessoas não param de dizer que a vida é bela, que vó-ana está cada vez mais exuberante - ela simplesmente contempla a paisagem pela janela. Deve ser um saco aguentar toda essa gente! Tio João não vê a hora de ela bater as botas, quer dividir logo a herança. Esses dias, ligou lá em casa insinuando que devíamos provar que vó-ana seria incapaz. Sem vergonha igual ao desfigurado do meu ex! Vovó não, ela olha, contempla a todos com o mesmo tom, desde sempre. Nem me lembro do vovô, talvez por ele ficar ali deitado, inoperante. Será que entende alguma coisa?
Nos tempos em que vovô falava era tudo diferente. As festas eram festas! Comíamos, bebíamos... O povo ficava trêbado e acabava falando de amor. Não posso me esquecer dele, foi especial. Mas vovó vive e vive bem! Uma flor no meio desse deserto implacável. Olha lá, tio João falando que vó-ana é um exemplo de vida, "sempre amou a vida e ama!". Ah, meu deus! Mamãe até aqui... Reclamando agora de dor nas costas, sinusite ou sei lá o quê. Deve ser difícil: perceber que papai tem que dar atenção a tantas pessoas. Onde é que anda Lampião? Maria Bonita ficou desamparada! Ele não me sai da cabeça e não servem logo o almoço, que coisa! Ufa, lá vem tia-solteirona-joana. Tá tudo lá... Frango caipira, feijão tropeiro, milho, salada e, de quebra, muito sorvete...
Vou à forra! Como de tudo e ainda me lambuso no sorvete feito pela solteirona. Nossa, como tanto que parece ser vertigem esses pensamentos. Bucho cheio! Vovó-perto-de-titia-perto-de-mamãe-perto-de-papai... Nossa, vovó está caindo!... Ai, meu Deus! Vo-ana engoliu um comprimido de cianureto...
Comentários
Postar um comentário