JÁ-DE-CRISTO
Ele gostava de sair à noite com fins nada esclarecedores. Emparelhava o carro nos semáforos e cantava a primeira música que vinha à mente. Cada noite uma história, um lugar, algumas pessoas! Havia parado no sinal da Praça Cívica com a Rua 84, carros lado a lado, permitiu-se cantarolar: "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você, o que vai...", embananou-se na letra e estancou a canção. A moça, que dirigia um veículo bacana ao lado, deu uma gargalhada, furou o sinal, e se mandou. Nesse meio tempo, trouxe o bloco de anotações ao colo e limitou-se a escrever: "Sorriso cínico". Ainda parado, observou a Pastelaria 84, mortais mergulhavam cerveja adentro. Do lado oposto, um posto, e alguns habitantes da noite, moradores de terra nenhuma. Parou e desceu.
Aproximou-se dos dois rapazes que estavam sentados, não percebera a presença da mulher. Calado, sem olhar diretamente aos dois, começou a cantar um rap, Diário de um detento. Um deles, continuou silenciosamente a canção... apenas mexia braços e pernas! Comentaram algumas coisas sobre o louco cantor, mas nada em especial. Rafael, esse que queria a aproximação dos habitantes da noite, foi até a loja de conveniência, comprou duas cervejas e retornou. Chegou ainda mais perto dos moradores e entregou-lhes, uma a uma, as cervejas. Infelizmente, não percebera a singela presença da moça encostada. Ela, que também queria a bebida, pediu um poema, já que não ganhara cerveja. Segundos depois, Rafael, afeituoso à fala, declamou um poema de um autor nada conhecido: "Pai nosso que estais terra/ Profanado seja vosso nome/ Vem a nós, nosso reino/ Seja feita nossa vontade/ Na terra ou em qualquer lugar/ A vontade de poder nos dai hoje/ Perdoai nossas crenças/ Assim como fingimos acreditar em vós/ Deixai-nos em plena tentação/ Mas tirai-nos da mente a tola ideia do inferno/ Amém!"
Todos se maravilharam! O espírito santo havia tocado os imortais. A moça, não satisfeita com os versos, demonstrou desejo de falar, e em inglês - verdade ou não, insistiram todos para que ela debulhasse o idioma anglo-saxão, ali, sentada ao meio-fio. Ela, porém, ciente dos poderes dos imortais, exigiu, antes, uma Heineken ... Aí sim, falaria como quem domina a língua materna! Não demorou para que trouxesse a chave da nova língua: promessa feita, promessa cumprida, era o trato dos habitantes de terra nenhuma. "Yes, it's the beer!", estrebuchou a falar... Rafael, tentando transformar o monólogo em diálogo, fora bruscamente interrompido por Jade, a moça - alegara apenas ser obra do Besta-Fera, aquele idioma.
Na fala calma de Jade havia um quê de coisas perdidas. Ela iniciou a conversa contando sobre o Besta-fera. Era um monstro de vários olhos, o Demo! Após dizer sobre os poderes incríveis do ser, Reymond, um imortal das ruas, começou a evocar o coisa-ruim. Conclamava a presença do monstro sem nenhum receio... Jade, moça que pedira o poema, entretanto, curvava a cabeça - dizia para não continuar as provocações. Uma cena esdrúxula! Rafael querendo o ver o circo pegar fogo, Reymond, bêbado, evocando a Fera e a moça dizendo baixinho: "sou-de-Cristo, sou-de-Cristo, sou-de-Cristo". As bizarrices não pararam por aí... É que Rafael quis saber se o Besta-Fera estaria por ali, nalgum lugar. Ela estremecia, entristecia...
Arcanjo, irmão de Reymond, também imortal das ruas, foi muito prudente. Percebendo que Jade estava desfalecendo, chamou o irmão e deu-lhe uma tremenda bronca. Ainda, apenas com o olhar, mostrou a Rafael que aquilo era perigoso demais. Um minuto de silêncio! Um playboy, mortal como a maioria, saiu da Pastelaria, completamente embriagado, e tentou entrar carro adentro. Reymond, que conhecia os mortais, de longe-longe gritou por uma moeda - disse precisar de combustível para funcionar! Uma moeda, juntamente com o complemento de Rafael, e mais uma cerveja. O interesse ali, dos três, era a vida de Jade. Após alguns goles, continuou falando...
Contou que nascera em Nova Orleans e que morara por lá até os cinco anos. Ali tinha sido estuprada - uma lágrima desceu - e fora vendida a uma estadunidense que morava no Brasil. Veio para cá aos cinco, trabalhara escravamente na casa dessa mulher até os doze... Fugira em seguida. Rafael, impressionado, perguntou sobre a mulher, onde estaria aquela que comprara Jade um dia? Morta, resposta fechada. Aos doze, saíra da escravidão e fora à rua... Tornara mais uma habitante da Terra-Sem-Lei!
Comoveu a todos, aquela conversa! Foi preciso Rafael trazer uma Heineken para cada um digerir o que ouvia. Jade, percebendo que os ouvidos ali eram a ela, continuou a fala-pela-fala. Surpreendeu aos ouvintes, saber que o Besta-Fera estaria ali, ela estava vendo o Trem-do-Mal... Jade afirmava com toda convicção do além-mundo, dos imortais! Curvou novamente a cabeça e entrou na mesma ladainha: "sou-de-Cristo, sou-de-Cristo, sou-de-Cristo". Aquela fala não terminou ali! Continuou a mesma fala-lunática... Sem paciência, Raymond pegou sua sacola com os pertences e se mandou. Arcanjo, mais solidário que irmão, encostou a cabeça de Jade ao ombro... Percebendo que Jade não sairia do surto, Rafael entrou no carro, parou no primeiro semáforo ao lado de um caminhão. Abriu a boca e começou a cantar.
Aproximou-se dos dois rapazes que estavam sentados, não percebera a presença da mulher. Calado, sem olhar diretamente aos dois, começou a cantar um rap, Diário de um detento. Um deles, continuou silenciosamente a canção... apenas mexia braços e pernas! Comentaram algumas coisas sobre o louco cantor, mas nada em especial. Rafael, esse que queria a aproximação dos habitantes da noite, foi até a loja de conveniência, comprou duas cervejas e retornou. Chegou ainda mais perto dos moradores e entregou-lhes, uma a uma, as cervejas. Infelizmente, não percebera a singela presença da moça encostada. Ela, que também queria a bebida, pediu um poema, já que não ganhara cerveja. Segundos depois, Rafael, afeituoso à fala, declamou um poema de um autor nada conhecido: "Pai nosso que estais terra/ Profanado seja vosso nome/ Vem a nós, nosso reino/ Seja feita nossa vontade/ Na terra ou em qualquer lugar/ A vontade de poder nos dai hoje/ Perdoai nossas crenças/ Assim como fingimos acreditar em vós/ Deixai-nos em plena tentação/ Mas tirai-nos da mente a tola ideia do inferno/ Amém!"
Todos se maravilharam! O espírito santo havia tocado os imortais. A moça, não satisfeita com os versos, demonstrou desejo de falar, e em inglês - verdade ou não, insistiram todos para que ela debulhasse o idioma anglo-saxão, ali, sentada ao meio-fio. Ela, porém, ciente dos poderes dos imortais, exigiu, antes, uma Heineken ... Aí sim, falaria como quem domina a língua materna! Não demorou para que trouxesse a chave da nova língua: promessa feita, promessa cumprida, era o trato dos habitantes de terra nenhuma. "Yes, it's the beer!", estrebuchou a falar... Rafael, tentando transformar o monólogo em diálogo, fora bruscamente interrompido por Jade, a moça - alegara apenas ser obra do Besta-Fera, aquele idioma.
Na fala calma de Jade havia um quê de coisas perdidas. Ela iniciou a conversa contando sobre o Besta-fera. Era um monstro de vários olhos, o Demo! Após dizer sobre os poderes incríveis do ser, Reymond, um imortal das ruas, começou a evocar o coisa-ruim. Conclamava a presença do monstro sem nenhum receio... Jade, moça que pedira o poema, entretanto, curvava a cabeça - dizia para não continuar as provocações. Uma cena esdrúxula! Rafael querendo o ver o circo pegar fogo, Reymond, bêbado, evocando a Fera e a moça dizendo baixinho: "sou-de-Cristo, sou-de-Cristo, sou-de-Cristo". As bizarrices não pararam por aí... É que Rafael quis saber se o Besta-Fera estaria por ali, nalgum lugar. Ela estremecia, entristecia...
Arcanjo, irmão de Reymond, também imortal das ruas, foi muito prudente. Percebendo que Jade estava desfalecendo, chamou o irmão e deu-lhe uma tremenda bronca. Ainda, apenas com o olhar, mostrou a Rafael que aquilo era perigoso demais. Um minuto de silêncio! Um playboy, mortal como a maioria, saiu da Pastelaria, completamente embriagado, e tentou entrar carro adentro. Reymond, que conhecia os mortais, de longe-longe gritou por uma moeda - disse precisar de combustível para funcionar! Uma moeda, juntamente com o complemento de Rafael, e mais uma cerveja. O interesse ali, dos três, era a vida de Jade. Após alguns goles, continuou falando...
Contou que nascera em Nova Orleans e que morara por lá até os cinco anos. Ali tinha sido estuprada - uma lágrima desceu - e fora vendida a uma estadunidense que morava no Brasil. Veio para cá aos cinco, trabalhara escravamente na casa dessa mulher até os doze... Fugira em seguida. Rafael, impressionado, perguntou sobre a mulher, onde estaria aquela que comprara Jade um dia? Morta, resposta fechada. Aos doze, saíra da escravidão e fora à rua... Tornara mais uma habitante da Terra-Sem-Lei!
Comoveu a todos, aquela conversa! Foi preciso Rafael trazer uma Heineken para cada um digerir o que ouvia. Jade, percebendo que os ouvidos ali eram a ela, continuou a fala-pela-fala. Surpreendeu aos ouvintes, saber que o Besta-Fera estaria ali, ela estava vendo o Trem-do-Mal... Jade afirmava com toda convicção do além-mundo, dos imortais! Curvou novamente a cabeça e entrou na mesma ladainha: "sou-de-Cristo, sou-de-Cristo, sou-de-Cristo". Aquela fala não terminou ali! Continuou a mesma fala-lunática... Sem paciência, Raymond pegou sua sacola com os pertences e se mandou. Arcanjo, mais solidário que irmão, encostou a cabeça de Jade ao ombro... Percebendo que Jade não sairia do surto, Rafael entrou no carro, parou no primeiro semáforo ao lado de um caminhão. Abriu a boca e começou a cantar.
É obra da Besta-Fera, afinal.
ResponderExcluirMs. Regner