Em nome do AÇÚCAR, amém

"Por que não destes um raio brando ao teu viver?"
 Pedro Kilkerry



 - Ele está foragido, provavelmente morto! Mas lembrem-se, antes de tudo, ele é obrador! Tem tatuado nas costas a frase DA MERDA ao caos, não se sabe exatamente a razão. Cogitam que tenha visto um filme de Almodóvar cuja temática fosse a mesma. Ou, talvez, seja mais uma frase barroca, de algum escritor morto.

Após ter caminhado lentamente pelo parque Areião, Ignácio voltou à casa. Tudo estranho: merdas na parede, livros em cinzas e um porco amarrado na mesa de centro. Na boca do animal havia uma carta... Após a leitura, percebeu que as coisas mudariam dali em diante. Era um atentado: um ex-discípulo atentado fizera tudo aquilo - não suportara a ideia de capitulação.

Deitou e dormiu um sono justo. Acordou, juntou tudo que tinha, ao álcool e fósforo, ateou fogo na casa. Saiu daquelas chamas e foi, sem nada nas mãos, lendo os muros da cidade. Na praça dita cívica, parou para conversar com alguns moradores de rua - todos lambuzados de merda e lama. Durante o diálogo, percebeu que não havia nada mais além da MERDA. A conversa se esgotou e Ignácio lançou-se num descaminho: rua a rua, um novo horizonte foi tomando corpo!

Numa viela, no setor sul, pensou que era hora de fazer tudo ao contrário. Talvez porque novos momentos, oportunos ou não, nascem ao pôr do sol. Ignácio sentiu que era hora de parar, ali mesmo! Que ser professor já tinha saturado, como o dia que findara. Fundaria agora, outra coisa qualquer.

Como já tinha se habituado a viver com pouco, ou nada, não foi difícil passar os primeiros dias na rua. Não queria ir à lata de lixo, porque percebera que aquela não era bem a dele. A ideologoia da MERDA já não tinha o valor de antes, e mendigar tinha um quê de submissão sem igual - não era mesmo a dele!

Num dia de sol, quando a fome dilacerava o estômago, Ignácio permitiu-se observar o lixo alheio. Viu de tudo, mas apenas o açúcar, branco-nuvem, o fascinou. Estava claro, faria de tudo para propagar o doce-branco-do-açúcar-nuvem. Seria naquele local que proferiria, toda manhã de sol, a fala doce-do-açúcar-nuvem! Não precisava de muito, aquela praça, entre as vielas do setor sul, era um ambiente propício...

Nos primeiros dias, os vizinhos chamaram a polícia: alguém comendo açúcar só podia ser bandido! O policial apareceu, sirenes ligadas, mas logo entendeu que se tratava de mais um companheiro da MERDA. Como toda a polícia já era adepta à filosofia-nenhuma, o policial não foi capaz de fazer mal a ele. Muito pelo contrário, após longas reflexões ao lado de Ignácio, percebeu que ali nascia um novo conceito de vida, bem mais coerente que o anterior: a vida como açúcar, doce, serena - e sem sirenes coloridas! 

Durante um ano, Ignácio proferiu seus seminário apenas para o policial, cujo nome era bastante sugestivo, Alvino. O mundo todo estava em MERDA, mas ali, em meio a uma praça deserta, novas ideias pareciam proliferar... Outras pessoas começaram a aderir, ao que ficou conhecido como filosofia-total-do-açúcar-nuvem. Depois de algum tempo, cantando o mesmo hino no mesmo horário, às sete, Ignácio passou a pensar que era hora de mostrar para o mundo que a MERDA mudara. Agora era o AÇÚCAR, açúcar branco, a filosofia-total! Todos os discípulos passaram a usar a cor branca em todas as atividades desempenhadas durante o dia, o que gerou muita inveja entre os seguidores da MERDA. 

O tempo passou e Ignácio foi convidado a ir ao Programa do Jô. Agora a Rede Globo permitia a entrada dele, afinal, vestia a cor da paz. Todo o mundo virado em MERDA, entretanto a emissora insistia num branco-alegria! As novas ideias ignacianas passaram a ter grande repercursão no Brasil, após a conversa com o Gordo. A partir daí, começaram a abrir locais de reunião em vários espaços, todavia os adeptos da MERDA não aceitaram tamanha ousadia daquele que havia declarado MERDA ao mundo. AÇÚCAR contra MERDA, a guerra começara! A amplidão das ideias ignacianas era tamanha que a guerra não foi só cenário brasileiro, mas mundial. Bombas de MERDA eram arremessadas por todo canto, enquanto se aperfeiçoavam as bombas de AÇÚCAR - um caos! 

Ignácio, que sempre foi de paz, arrumou suas roupas branco-pretas e mudou-se a Buenópolis, cidadela que ainda não havia conhecido a MERDA, nem o AÇÚCAR.

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