OLHOS ABERTOS!

Vir à praça num domingo tem um brilho especial. Não é porque já começou a florir, ou pelos cachorros que, aliás, são sempre incríveis. Adoro flores e amo os cães, mas o que me chama atenção nos parques de domingo está em outra atmosfera, na órbita do que não se pode dizer, naquilo que não se compreende. O juízo extremado dos humanos me põe fim ao imenso prazer contemplativo dos jardins. Eles não sabem olhar: veem sempre o que está fora com o julgamento interno. Jamais conhecerão o doce olhar natural...



Quando nasci, fui prometido em casamento à vizinha, melhor, à filha da vizinha, que até então não tinha nascido. Desde pequeno fui aprendendo a amar uma pessoa que não existia. Eu, como meu papai dizia, era alguém diferente de todos, pois já tinha aprendido a sentir. Mamãe falava que "Crianças levam tudo na brincadeira, já que quase ninguém as entendem". Entendo isso agora: os adultos geralmente não percebem que a fantasia revela aquilo que é difícil dizer, ou até impossível! Lembro-me, claramente, quando me apeguei à gatinha da minha falecida mãe. A gata cujo nome me arrepiava, chamava-se Dendê - não sei por que cargas d'água esse nome causava calafrios. Confesso que ainda hoje não compreendo tudo, apesar de já ter passado noites a fio refletindo sobre essas sensações esdrúxulas. Ficávamos noites inteiras juntos, eu e Dendê, sem fazer nada, apenas nos olhando... Eu não permitia que ela dormisse antes de mim. Habituei-me a esperar Dendê dormir primeiro, após o maravilhoso sono, eu apagava. Isso se repetiu até meus doze anos, quando outras coisas foram me interessando mais. Não digo que deixei de amar Dendê, até hoje carrego a correntinha dela na carteira, mas é que, depois dos doze, comecei a me interessar pelos parques.




O início foi muito difícil. Uma forte atração me conduzia aos parques... Passava a parte da manhã inteira por lá! Mas quando chegava em casa sentia um tremendo remorso - tinha traído Dendê. Mesmo assim não censurei minha imensa vontade de contemplar: olhava as flores, em especial as brancas e amarelas, os cachorros e as crianças. Observar os cães era sempre mais doloroso! Como podia admirar os inimigos de Dendê? Isso era traição!



Comecei a amar cães e flores. Não havia nada mais cruel que ver cães pisando nas flores, aquilo me dilacerava. Minha gata já não estava bem, ela carecia de cuidados especiais, mas o que eu fazia? Passava o dia inteiro nos parques... Ora num, ora noutro, mas sempre espreitando as flores e os cães. O adoecimento de Dendê foi se tornando mais grave, não posso ocultar o sentimento que me apoderou covardemente... Fui impelido por uma força maior que eu, como um Deus ou alguém que brinca de lego... Sei que era uma força descomunal! Não resisti, fui à cozinha, peguei uma faca de serra e destruí os pelos de Dendê. A coitada ficou tão feia, cheia de caminhos de rato no couro... Ela me olhava sem compreender, porém, ainda mais forte, veio a vontade de cortar o pescoço da gata. Assim o fiz! Arranquei a cabeça de Dendê. Os olhos dela estavam fechados, e logo tratei de abri-los. Sem porquê trouxe a porção ensanguentada para mais perto de mim e mordi os olhos da gata, um por um. Senti o gosto de sangue forte na boca, ainda passei a língua nos olhos, nos dois, antes de engoli-los. Depois daquele "banquete", entrei em sono profundo...




Ainda não disse muito sobre a minha vizinha, dona Raimunda. A filha realmente nasceu, mas eu já tinha sete anos. Não achei estranha a diferença de idade, talvez porque meus pais já tivessem me preparado o suficiente. Minha mãe dizia "Seu pai é dez anos mais velho que eu, me ama dez vezes mais que todos os outros!". Não sei exatamente o que sentia ao ouvir isso, sei que gostava das expressões que minha mãe fazia... Como ela gesticulava! De Raimunda nasceu Rebeca e com essa iria me casar.



Completei treze anos, Rebeca estava com seis. Dendê já havia se retirado do plano material, os parques estavam saturados de mim - minha coleção de orquídeas tinha murchado e os cachorros perderam o encanto. Rebeca sim, permanecia formidável! Ela ia para a minha casa e ficava mexendo nas coisas sem pudor. Gostava de vê-la brincando com tudo e todos. Ela sabia me encantar... Olhava de longe e abria um grande sorriso. De vez em quando sentava ao meu lado e danava a sorrir, antes mesmo de começar a fazer cócegas nela. Era magnífico! Aproximamos um do outro sem perceber... Esqueci, ao menos por um tempo, gatos, flores ou cachorros.



Numa manhã de domingo, Rebeca sentou-se ao meu lado esperando por "cosquinhas", entretanto não foi o que propiciei. Os olhos já estavam fechados e eu, não sei por que, mordi vorazmente a face dela! Esse fato foi o suficiente para trazer toda casa à sala... Não sabiam qual tinha sido o bicho que havia feito tamanha barbárie. Eu, como que possuído, apenas disse que tinha sido um cão feroz que já havia se mandado. Ninguém queria saber exatamente sobre o cachorro, queriam cuidar dos ferimentos causados pela mordida. Por obra do acaso, não descobriram que fora eu. Os ferimentos foram leves, embora bastante doloridos, mas nem isso fez Rebeca "abrir o bico", não ficaram sabendo o real autor. "É realmente uma boa esposa", pensei.




Os anos passaram... Só eu e Rebeca dividíamos nosso segredo. Já compartilhávamos outras coisas também: contas a perder de vista, gatos, flores, cães e um lindo bebê. Tinha aqui vinte e seis anos, e amava minha mulher. Meu amor era dividido entre meus três cães vira-latas, dois gatos siameses e bastantes flores diversificadas. Além disso, tínhamos Sara, nossa linda filha. Até que...




Era uma manhã de domingo, dia vinte e quatro de dezembro, minha família havia acordado cedo, enquanto eu ainda permanecia preguiçosamente na cama. Levantei-me sem pressa, e dei-me a contemplar o jardim que a mim se oferecia cheio de gotas de orvalho. Não pude deixar de sentir um êxtase ao olhar aquelas maravilhas! Depois de um tempo vendo o jardim - flores diversas, cães pulando e gatos escondidos -, minha maravilhosa filha entrou no quarto. Não sei o que me deu... Apenas a trouxe ao colo e, enquanto ela, de olhos fechados, pedia "Papai, faz cosquinhas!", eu me aproximei daquele rosto angelical e mordi ordinariamente o olho direito! O grito foi estrondoso, mas não parei por aí... Selvagemente, permaneci com ela segura, na mesma posição, e mordi o outro olho de Sara. Muito sangue jorrava... Tentei estancar a ferida, mas já era tarde demais...

Comentários

  1. Marcos,
    Adorei - "a fantasia revela aquilo que é difícil dizer, ou até impossível!"
    ... a perversão se constitui nos desejos não ditos...
    Obrigada por me inspirar com sua escrita.
    Bjs...
    Carla Patrícia.

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  2. Ja te falei que tô com medo de vc? Pois é
    Li Olhos abertos e fiquei super traumatizada
    Quando me recuperar o releio , prossigo com a leitura dos outros capítulos e digo o que achei.
    Quanta agressividade reprimida
    Cuide-se e mantenha distancia de mim ta Rs
    Seu psicopata
    Me lembrei de quando vc disse gostar do meu olhar
    Eu tbém gosto dele,por isso ficarei longe de vc Rs
    Bjos e se cuida!


    Lorena

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  3. Fico extremamente satisfeito em poder inspirar sua escrita, Carla. Saber que tenho leitores já é uma inspiração pra mim... Principalmente uma leitora como você, com sua capacidade de abstração... me deixa feliz!


    Lorena, não precisa ficar tão assustada assim, rssss... boa parte das minhas fantasias ficam aqui, nesse blog - boa parte! Rsss... Ah, a escrita já é uma forma de terapia... expresso tudo por aqui, sem pudor! Fico feliz que tenha voltado a comentar meus textos... grande abraço!

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  4. Esse olhar das três, gata, Rebeca e filha o incomodavam porque todas reportavam a falecida Mae?por que elas não sabiam olhar ou ele não sabia lidar com o doce olhar natural? Ou tudo isso e o que mais?
    Parabéns Marcos, seus trabalhos e comentários são bem interessantes

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  5. Esses contos procuram estampar o lado "humano" dos perversos. O perverso quer contrariar o pai, o pai simbólico, as regras, as normas vigentes. Nesse ponto de vista, o protagonista faz coisas estranhas em busca de atravessar a ordem estabelecida, mesmo que desconhecendo as causas motivadoras dos fatos. Acho que tudo que foi dito por vc é está englobado aqui... pelo menos de forma indireta, né?! Grande Abraço, Marco... Espero ter você por aqui constantemente. Gostei muito do seu comentário, mostra um leitor inquieto que vai seguindo as pistas que o texto fornece. Abração

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