CADEIRANTE POR OPÇÃO

Sou espírita de profissão, melhor, de religião. É que a ajuda que presto à humanidade não está nos semáforos, nem mesmo na periferia, ao contrário, contribuo para que os ricos continuem vivos. Cada um tem sua sina quando se pensa em caridade. Alguns passam a vida entregando moedas sujas em terminais, outros em cemitérios consolando aqueles que perderam um ente, querido ou não. O importante na linha de Kardec é seguir a própria sorte.

Todos os dias ia ao Hospital Rassi, o maior do centro-oeste. Fiquei conhecido por lá! "Home da cadeira" ou simplesmente "cadeirinha", como me chamavam ali. Sentava-me na cadeira de rodas e lançava-me à sorte. Não que eu fosse cadeirante de doença ou acidente, mas para consolar um cabra na merda, você tem que estar numa merda maior. Assim que descobri minha sina, passei a freguentar os hospitais de bacanas, mas chegava de cara limpa, roupas chiques, colar de ouro etc. Quase todos os dias eu ouvia do pessoal: "você não sabe como sofro, meu filho!" - aquilo me perturbava dum jeito... Percebi ser melhor bancar o fodido também. Comecei a usar roupas velhas, mas não foi o suficiente... Até chegar à condição atual: cadeirante por opção.

Foi num domingo. Tinha acabado de sair do hospital, um fracasso sem consolo aquele dia. Ouvi quatro vezes a mesma ladainha: "você deve ter vida boa... já se imaginou assim?". Foi aí, nesse domingo, que percebi a necessidade de me mutilar para poder consolar os doentes. Até Jesus fez isso... Andava longas distâncias com a mesma roupa, às vezes descalços, e o que acontecia? As pessoas passavam perfume nos pés dele... Paguei um médico, desses loucos por dinheiro, que me tirou uma perna. No começo foi uma maravilha... O pessoal do hospital passou a sentir pena de mim e, com isso, pude ajudá-los mais e mais. Os epítetos que recebia não me perturbavam: "cadeirinha", era o mais usado - talvez porque o diminutivo demonstra uma espécie de carinho, cumplicidade. Passei a ouvir os segredos daquelas pessoas e percebi que a caridade é algo singular. Conheci uma senhora de uns setenta anos (o nome não me recordo) a qual, depois de longas conversas, me contou que morria de vontade de abrir as pernas. Eu acabei penetrando a velha! Uma mocinha, devia ter um dezoito anos, queria que o pai dela, sumido há anos, lhe fizesse uma visita. Descobri onde morava o desgraçado e o fiz ir ao hospital. Confesso que não foi fácil... Ele só topou ver a filha quando apontei-lhe um oitão.

Um homem de vários apelidos! Chamavam-me "Robin Hood às avessas", porque no lugar de tirar dos ricos e dar aos pobres, deixava os ricos vivos, o que significa rico ainda mais rico. Mas, com passar do tempo, percebi que a falta de uma perna já não sensibilizava ninguém, tinham se acostumado comigo. O maior perigo que estamos sujeitos é o costume! Esse, esteriliza os abraços, mata lentamente... Alguém que nasceu para ajudar os ricos em estágio terminal não pode acupar o lugar do provável, do previsível, do premeditado. Os doentes do Hospital Rassi queriam minha presença para contar baboseiras inúteis. Fiz inclusive uma agenda para atender a todos. Mas era completamente sem sentido aquele tipo de conversa, não era caridade aquilo. Por isso dei um outro passo rumo à minha sorte. Essa nova etapa não seria muito aceita pelos familiares, então mantive o sigilo. Jesus também gostava do silêncio! Imagina se o salvador revelasse os segredos de seus milagres? Quantas mulheres teriam ficado sem esposos!...

Meu novo passo consistiu em tirar os pobres-diabos da mesmice. O que mata suavemente não é a doença, mas a falta de vontade de viver - li isso em algum livro de autoajuda. Só uma coisa faria os ricos saírem da monotonia. Fiz o que pude: fiquei íntimo de alguns doentes do hospital e passei, inclusive, a frequentar com regularidade a casa dos desgraçados. Dizia que, para ajudar os coitados, precisava conversar com os parentes. Várias vezes fui à casa deles... Em todas elas eu descobria algo muito valioso para o doente. O primeiro caso solucionado nessa nova etapa foi de uma médica, sofria depressão severa, estava prestes a cometer o suicídio. Como todo rico ama o luxo, não é difícil fazer o que fiz, apenas requer um pouco de observação. Essa médica, de nome Joana, amava comer uvas passas e castanhas. Todos os dias os filhos dela traziam cautelosamente as melhores uvas e castanhas do Brasil. Como já era alguém de confiança, recebia a encomenda e a entregava à doutora. Antes, porém, a entrega passava pelo meu ritual: levava-a para um químico, grande amigo meu, e ele fazia coisas estranhas com o material, retirava todo sabor do alimento. Voltava e entregava para a doente. Ela enlouquecia ao perceber que não sentia o sabor das uvas, tampouco das castanhas. Esse caso foi até simples, porque logo logo a doutora quis melhorar para procurar uvas com sabor. Outro caso interessante foi de um empresário. Amava mais que tudo a riqueza que possuía. Nesse caso, tive que atuar juntamente com os familiares. Estava com câncer em estágio terminal e resolvemos publicar em todos meios de comunicação de massa a falência da grupo C.O. CORPORAÇÕES. Ele enloqueceu... Ficou completamente curado e recebeu alta.

Atualmente estou ajudando várias pessoas ao mesmo tempo. Saí do hospital e atendo em domicílio. Ajudo pacientes diversos, todos com algumas características em comum: são ricos e estão morre-num-morre. Chamam-me SALVADOR! E salvo mesmo... após alguns meses de trabalho, sempre enlouqueço o paciente, fica curado. Mas um caso tem me chamado a atenção: um jovem de vinte e cinco anos que não sara de uma úlcera no duodeno. O interessante é que, de quando em quando, a ferida reabre, sempre fica à beira da morte. O difícil nesse caso é que o rapaz não quer a minha ajuda, sequer conversa comigo. Ontem, num diálogo com o seu pai, percebi o quão importante para a família era ter um filho doente. Muita gente visita a casa deles, vivem de casa cheia quando o rapaz está mal! Reimberg, o jovem a quem me refiro, ficou os dois meses passados sem a bendita úlcera e, nesses meses, pude me munir de informações necessárias para os próximos eventos. Percebi que bastava a ferida se fechar para cessar as visitas, exceto eu que continuava seguindo meu destino. Isso perturbava a ordem familiar... O pai ainda tentava fazer festas para comemorar o ressurgir do filho, mas poucas pessoas frequentavam aquele lugar. Batata, o filho ia ficar doente novamente. Minha ajuda nem sempre é bem quista, mas sempre necessária. Não deu outra, o rapaz adoeceu novamente, mas a diferença agora é que ninguém o visitou dessa vez. Semana passada, conversei com o máximo de familiares, disse que, por ordem divina, não era para visitar a família durante um ano. Fiquei atento para ver se alguém ia furar o trato. Tudo ocorreu dentro dos conformes: o garoto adoeceu novamente e pulou do décimo andar... Felizmente, o povo acredita mesmo nas ordens divinas. É mais um caso solucionado!... Só a família compareceu ao velório!

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