Um imortal, bêbado, quer ser ouvido

(...) os verdadeiros adoradores adorarão em espírito e em verdade (...) João 4:23


Saio à noite, pelos vales de Santo Antônio, ou em Buenópolis-de-infância, ainda, na Praça Cívica, ou em qualquer lugar – é onde encontro os esquecidos. O gozo da escuridão me faz como Poe, faço digressões para ouvir mais, é só mais uma sexta. O sexo explícito dos imortais dá voz a quem perdeu a língua, mas não são os lugarejos ou as pessoas, ou mesmo o clima, é a imortalidade que me persegue, em casa, nos trabalhos normais, mortais!

Ontem, nesse mesmo horário, estava deitado num banco, na praça Valter Santos. Era quinta-feira, eu tinha tomado três copos de suco de maracujá e alguns de caldo de cana... Meus pés deslizavam céu acima, sequer sentia os batimentos cardíacos, não havia relógio naqueles eternos instantes. Os dedos das mãos ficaram em pleno gelo, enquanto os pés tocavam sutilmente a ponta de um Ice Berg. Flutuei por ambientes confusos, sem reflexão, sem o aprisionamento da vã memória...

Agora, anuncia-me a sexta! Bares lotados de mortais... Hoje meu trajeto será rumo a Buenópolis de mim. Porém, para chegar aí, geograficamente talvez tenha que passar pelas praças “C”, Valter Santos ou Cívica. Como alguém que já renasceu no próprio corpo e no mesmo tempo, deixo o carro me guiar no desrumo de mim. Desço na praça “C”, entretanto não há, nessa noite, um só imortal aqui. Bebo só, imortalizo-me no verde cinzento da praça! Continuo a trejetória desajeitada...

Na Praça Valter Santos há bastantes de mim. Alguns parados fumando, outros proseando sozinhos – um bebe algo estranho, de cor verde. Essa é a noite do verde! Mas não é cor-capim, é um cinza esverdeado... Apesar de saber que conheço intimamente todos ali, sequer interrompo meu desrumo. Imprevisivelmente, chego à Praça Cívica! Ultimamente meus delírios estão me guiando ao centro da cidade. Os imortais continuam sentados no mesmo lugar, onde cabe apenas uma banda da bunda. Eles ficam bem ajeitados por lá. Sou recebido com pouco clamor, como sempre... Os delírios coletivos têm algo de igreja. Todos habitantes da noite sentados, rezando um devaneio geral, apenas meia bunda se senta, a outra desbunda em pensamentos...

A fala deles hoje não tinha muito afinco. Quer dizer, sempre há gozo ali, mas, hoje, era individualizado, cado um no seu próprio delírio. Arcanjo sorria, Reymond tomava 51, cabeça longe longe, e Jade fissurava no Besta Fera. Apenas não me interessei por eles hoje. Carro adentro, fui a Santo Antonio. Novo ambiente, mas nenhum conhecido. "Ney saiu" – fato quase impossível a quem conhece esse imortal! Paro em frente ao Bar do Valdoney, munido de uma cerveja que já esquentara, e deito no banco da praça.

Vou a Buenópolis-de-infância... Mas num estado de inconsciência, de letargia, vagueio pelos trilhos da rede ferroviária, pelas mangueiras da cidade... Da ladeira do Banco do Brasil sou lançado à Escola, dali, desordenadamente, voo às núvens. O monza de papai comparece sem por quê! Vago de lado a lado! Sou a própria rua inteira! Sou a ponte que mamãe ultrapassou sem ninguém ajudar: “nenhuma mulher já passou por essa ponte, para!”... Sou a ponte, as ruas, as casas, as janelas dos casarões. Sem aviso, sou devolvido à terra!... Um imortal, bêbado, quer meus ouvidos.

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