Tomou na taça errada!
Tinha construído as relações conjugais de forma um tanto estreita - carne, unhas e dentes. Não por causa da brutalidade do marido, mas por julgar ser prudente à mulher conservar os bons costumes. Sr. Antônio, o marido, empresário consagrado no ramo imobiliário, no início do casamento, vigiava constantemente sra. Raquel, a esposa. Após o terceiro mês de casamento, já tinha colocado um excelente detetive para seguir a mulher. Nesse período, fez questão de liberar o cartão de crédito a ela, mas as mulheres têm olhos oblíquos, não caem em qualquer cilada.
Sra. Raquel adorava ler, antes do casamento fora uma exímia devoradora de obras, entretanto, após conhecer sr. Antônio já não sentia tamanha necessidade de leitura. Preferia estar do lado do marido, conversar sobre os negócios, mesmo não entendo os códigos usados por ele: trocava facilmente inflação por inflamação. Passados os dois primeiros anos de alegria conjugal, invevitavelmente, a sra. Raquel foi devolvida abruptamente aos livros...
Guardara a obra completa de Sade numa caixa velha, não queria que fosse notada pelo esposo. Naquele dia, outubro de outono, acordou madrugada adentro e percebeu que o marido não estava na cama, dormira noutro canto. "Homens de negócios trabalham a todo instante", pensou sem susto algum, mas com deveras penas do companheiro. O sono não veio, e a sra. Raquel acabou por observar a caixa velha em cima do guarda-roupas. Como quem não quer nada, levantou-se, pegou a escada, subiu, quando já estava com o trambolho às mãos, escorregou. A queda não foi nada simpática a ela, quebrou o tornozelo e o braço. A partir daí, foi obrigada a passar alguns meses deitada.
Durante esses dias, meses, a sra. Raquel releu toda obra de Sade e Poe. O marido, quando estava em casa, não achava nada estranho as leituras, talvez porque não conhecesse o que era lido. "Uma terapia saudável!", comentava o esposo aos colegas. Nesses idos, um antigo amigo de Sr. Antônio, Rafael, apareceu por lá, uma visista corriqueira. Era rapaz novo e gostava de se enamorar de livros.
Chegou ainda na parte da manhã, flores lavavam a escada principal. Foi recebido pela secretária que, sob ordens do patrão, encaminhou o amigo da família ao quarto de sra. Raquel. Olharam-se silenciosamente por algum tempo, mas logo a conversa brotou dos livros. Tinha lido Sade ainda jovem, porém não se esquecera de nenhuma lição. Conversaram por horas, comentando sobre o isolamento do autor, as perversões e, não podiam se esquecer, da bela escrita do francês. Rafael chegou a defender que havia uma ciência na confecção de contos. Segundo ele, Edgar Alan Poe não conseguira teorizar bem essa ciência, fora Sade, com as próprias peripécias, que racionalizara a poética dos contos. Era diálago infindável entre ambos! Não foi à toa que Rafael passou a frequentar constantemente a casa dos amigos.
As visitas passaram a estreitar a relação entre os amigos. Sr. Antônio, no início, deixava-se conduzir por águas de paz, contudo, foi percebendo que outros amigos estavam sempre a fazer-lhe chacotas. Certa feita, estava sr. Antônio em um café perto de casa, quando Manustrão, colega de bar e de infância, já bêbado, começou a ironizar a doença de sra. Raquel. Dizia ele que ela precisava de amigo, que toda mulher necessitava de companheiros às horas difíceis... "Como é complexa a subjetividade femina!", dizia. Sr. Antônio não se sentiu à vontade com os comentários de Manustrão, colocou a bebida na conta e se mandou rumo à casa. Ao chegar, imaginou firmemente a esposa prostrada, depressiva, reclamando as velhas dores no tornozelo, ou apenas lendo os pobres livros. Entretanto, o que ele viu foi a sra. Raquel de pé, se maquiando e sorrindo ao espelho. Sentado à cama estava Rafael, com olhos atentos a tudo.
Sr. Antônio não se conteve... Saiu do quarto sem dizer palavra alguma. Alguns minutos depois, Rafael percebendo o clima estranho, pegou suas tralhas e se mandou. O esposo, após um longo período na adega, voltou ao encontro de sra. Raquel, às mãos ele trazia duas taças de vinho tinto. Entrou, sentou-se como se nada houvesse ocorrido, entregou uma taça para a esposa e beberam calmamente o líquido. Após alguma conversa, sra. Raquel contava que o amigo Rafael era homossexual, que ele sofria bastante porque não confiava esse segredo a ninguém, somente a ela. Sr. Antônio começou a sentir o efeito do cianureto colocado na bebida... Caído ao chão, Antônio percebeu, então, que tinha bebido na taça errada.
Caraca! Adorei! HAHAHAHA Que desfecho fantástico! E eu achando que ele ia surtar, que ela ia fugir.... nossa, adorei este conto! Parabéns, mais uma vez, parabéns! Se eu estivesse em um teatro agora, eu estaria aplaudindo de pé!
ResponderExcluirvaleu pelo incentivo, Cacau! Vamos todos ficar de pé!
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