A cara viva da morte

A sua piscina está cheia de ratos/
suas ideias não correspondem aos fatos/
Cazuza, O tempo não para


Minha grana acaba semana que vem. Quando pequeno, meu pai dizia "filho meu não foge à luta!", e não tinha mesmo como fugir, ele sempre me puxava pelo braço. Naquele tempo, há vinte cinco anos, papai vivia armado de um cajado, um laço (não de fitas) e a velha espingarda de chumbo. Não, ele não criava ovelhas. Mas os filhos, os treze filhos de papai, andavam no cabresto. Digo que foi educação de sucesso. Sucesso, porque todos nós, os pobres-diabos que sobreviveram, matamos um leão por dia, cada um à sua maneira.

Fui dando sempre o meu jeitinho: trabalhei como peão, auxiliar de serviços gerais, auxiliar de pedreiro, auxiliar do caralho! Sobrevivi. Entretanto, nos últimos seis anos venho num rumo diferente. Assistindo esses programas que passam depois da novela, aprendi que a vida podia ser melhor, "felicidade é questão de autoestima", dizia o repórter. O jornalista entrevistou uma série de velhos com dentes na cara, todos diziam que podiam ter sido bem mais felizes; que a vida podia ser mais bela a cada segundo. Se eu chegasse à velhice como aqueles velhos diabos, com todos aqueles dentes! Mas dei rumo diferente à vida - fui pela banda da Lei. 

Quando meu pai morreu, eu, ainda menino novo, passei a receber  dos meus colegas verdadeiros exemplos de felicidade. Eles matavam, roubavam, cheiravam, comiam de tudo... Viviam felizes: todos em bando, um bando de pau no cu. Morreram um a um, somente Pintão conseguiu permanecer vivo. Aquele povo assaltava juntos, comia a mãe do outro numa irmandade sem igual. Mas a morte, a morte  identifica a singularidade de cada um,  não leva todos ao mesmo tempo... foi um a um, a hora mais sublime não permitiu o coletivo reinar. Ah, o Pintão! Ele era o único que roubava, matava, o escambau, mas sempre só!  No início fazia parte do grupo, contudo, logo abandonou aqueles pau no cu. Não deixava ninguém botar as mãos nas armas dele: comentavam que Pintão tinha as melhores armas, comia as putas mais gostosas. Eu, que tinha que me virar da minha maneira, passei a observar os carros, não qualquer um, mas os veículos de gente bacana; de gente que tem pai, mãe e dentes na cara. Esse povo gente fina, que dá entrevista pra repórter, tem lá seus brios: gostam de adotar cachorros, crianças, casar gays, o caralho. São do bem. 

Foi num dia de fome, fome sem dentes na cara, que decidi ir pela primeira vez à casa de adoção. Já tinha observado aquele local. Uma faixa de pedestres que passava só carro fino. Às seis da tarde era o melhor horário: mães retornando com os filhos da escola, carros pra caralho, uma muvuca de gente atravessando, perfeito! Cheguei perto da faixa, esperando o momento certo, coloquei uma goma de mascar na boca, e dei os primeiros passos. Era um carro preto, desses grandes de viagem. Joguei-me na frente do automóvel e fui acordado no hospital após uma cirurgia no braço esquerdo. O bacana, um rapaz fino que beirava os trinta anos, dizia incessantemente “matei o coitado!”. Essa sensação era importante, não foi à toa que tirei três mil reais daquele pau no cu. Assim se deu minha vida: ora era atropelado por um homem, ora por uma mulher, velhos,  jovens, cornos e a puta que pariu. Todos, além de ricos, mostravam-se excelentíssimos pau no cu.

Daqui a uma semana meu dinheiro acaba. Mas o que ganhei nesses seis anos de trabalho não foi desperdiçado: comprei gados, cabritos e estou construindo uma tapera na chácara do Pintão. Ele, que ficou um bom tempo escondido, voltou bem de vida, comprou uma chacrinha, onde crio meus bichos e ele planta maconha. Daqui a seis dias não tenho mais dinheiro! Vou acabar tendo que vender toda a minha criação - foda! Agora aqui, olhando essa faixa, os carros passando, mas com medo de pular, de morrer. A última vez que saltei à frente de um carro, quase morri. Uma hemorragia na região abdominal me tomou por inteiro, foi por pouco. Os carros estão passando cada vez mais rápido, as donzelas não param, nem diminuem a velocidade quando avistam uma faixa de pedestres. O Brasil precisa mesmo de mais educação no trânsito. Ok, essa é a hora de mudar...

Vou até o meio-fio, bato meu antebraço contra a placa firme de concreto até quebrar o osso. Osso quebrado, vejo um carro de bancana em baixa velocidade e simulo um atropelamento. O motorista para o veículo e, completamente perplexo,  vem correndo em minha direção. Estico meu corpo sobre o asfalto e finjo um desmaio. Terei grana por mais alguns dias.


Comentários

  1. Putz.... vc está cada vez mais sarcástico e hilário! Tá aí, gostei tanto da história que li mais de uma vez, vontade de imprimir e ler mais umas várias vezes..... rs Parabéns meu amigo!

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  2. E eis que o canalha, de fomes sem dentes na cara, não foge à luta.

    (Cada vez mais finas as coisas por aqui...)

    Bjomeu!

    Fernanda Padilha.

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  3. Não há nada como um dia após o outro...

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