Poesia, análise e prostituição: subversão via linguagem


Poesia, análise e prostituição: perspectiva subversiva da linguagem

Poeta, profeta, protesta. A profecia anuncia o que virá. O profeta fantasia a realidade: partindo do imaginário, constrói e proclama um novo momento. Não é diferente o poeta. Ele sublima (ou seja, possibilita outro rumo ao desejo), e através da escrita constrói novos horizontes. O poeta subverte a linguagem, como a dar forma ao desejo, como a realizar o desejo. A transgressão é característica básica de quem é tomado pelo desejo, uma vez que a pulsão não segue os ditames morais. Não é falar com o desejo, porque o poeta é tomado pelo furo, pelo inumano, pela linguagem. Talvez, por isso, nasça o poema, e, em seguida, outro vem subsequente (o desejo não pode ser satisfeito completamente). Apesar da escrita, não há realização do desejo, o furo permanece! Há uma fome, fonte d'alma, que momentaneamente consegue se dar por satisfeita - nasce o poema -, há o gozo, mas, momentos depois, a fome (da fonte do desejo) toma o artista novamente - mais um ato subversivo (protesto) pode comparecer via escrita; é poesia.

O poeta é subversivo! Se o material primitivo da poesia é o desejo, o poema só pode ser um ato de transgressão. O desejo é o gigante que não se cala. O desejo é o inumano que esbraveja n'alma um grito por satisfação. Somos seres estruturados pela linguagem! Portanto, no poema, mais que nunca (por ser linguagem também), comparece as formações do inconsciente: metáfora e metonímia (para Lacan), condensação e deslocamento (termos Freudianos). Digo, enfim, que não há moral que sobreviva ao submundo da linguagem. Os sonhos podem ser completamente imorais, a ponto daquele que sonhou esquecê-lo, ou não conseguir se esquecer - com a poesia não é diferente! Apesar da repressão ser menor durante os sonhos, o poeta convive com toda parafernália linguageira. Enfim, pela poesia haveria a manifestação do inconsciente, que é imoral, inumano, transgressor.

O analista não é diferente. Ele, principalmente ele, deve conviver com a ordem do inconsciente, com os fatores linguagueiros, o inumano etc. A psicanálise só se fundou pela linguagem, mais especificamente, pela associação livre (que não é nada livre!). O analisando é associa-dor-nada-livre, já que funciona de acordo com o inconsciente (não há acaso em uma análise), e mais, essa fala-deslocada permite ao analisando se rever perante o Outro, perante si. O analista é subversivo como o poeta. O léxico estático do dicionário tem pouca utilidade para os variados significantes que surgirão em uma análise; pouco ou nenhum sentido ao poeta (os neologismos são mais interessantes!). Assim como o poeta faz constantemente neologismos, o analisando cria novos significantes que vão dar conta do Significante-Mestre. O  sentido é o que importa ao poeta, assim como para o analista. Uma palavra pode ter apenas um significado (levando em conta o dicionário), entretanto, possui, invariavelmente, diversos sentidos ao poeta-dor - o analista e o poeta. Diria que o sentido é a forma de satisfazer desejo via linguagem. Enfim, se o poeta não está implicado com a forma, o analista não o está com a norma.

O lugar do analista é qualquer lugar, não o lugar nenhum. Ele entra em cena em qualquer espaço, demarcando uma escuta própria. O poeta é de todos os lugares, um profeta que protesta. O analisando, ao chegar ao fim da análise, poetiza o próprio sentido da vida; faz profecia deliberada. A libertinagem da fala, que bolina em diversos significantes, aproxima o poeta e o analista da prostituta.  A prostituta faz no real o que o poeta e o analista fazem no simbólico. A transferência, em uma análise, pode simbolizar o ato de prostituição. A prostituta vai ao ato! Desata o nó, comparece o real. A prostituta faz no corpo o que o poeta e o analista fazem na linguagem; corpoesteria. E transgride no ato (independente da vida levada em outros espaços). Todos os três aqui comparados ocupam lugares e, por isso, seria no mínimo ridículo dizer que toda prostituta é perversa. Ela ocupa um lugar de transgressão, mas há pouca distinção entre essa que vende o corpo e aquele que vende poemas; que vende análise. O neurótico pode ocupar todos esses espaços, através da sublimação, mecanismo da neurose, ele pode dar vazão ao desejo via prostituição, via poesia, via análise. O perverso igualmente: o desejo de ser um falo ambulante pode fazê-lo prostituir (que é ser desejado); poetizar ou analisar. Até o psicótico pode ocupar esses espaços, ou seja, não é a estrutura que faz o ato perverso, mas tão somente o sintoma de cada um que comparece ali.

Mas muitas perguntas nos fazem refletir sobre a prostituição. Se não é questão de estrutura, o que leva alguém àquele lugar? Por que é tão discriminada a prostituição? E as diversas formas de prostituir: o desejo é o mesmo? Não, de fato não é questão de estrutura (basta escutá-las para perceber neuróticas, perversas e psicóticas desempenhando a mesma função). Esse fenômeno está muito mais ligado ao lugar ocupado por aquele sujeito. Assim, uma mulher pode ser uma boa mãe (boa no juízo da moral civilizada) e comercializar o corpo à noite. Vejo no desejo de analista um pouco do desejo do poeta e da prostituta. Esse desejo, tão caro à psicanálise, não é algo objetivo, prático e determinado, ao contrário, o desejo do analista está implicado diretamente ao sintoma psicanálise. Freud, como se sabe, foi tomado por esse sintoma, assim como Ferreira Gullar foi tomado pelo sintoma poesia. O poeta também não escolhe racionalmente ser poeta: a linguisteria toma esse ser de tal forma que o sintoma já é a poesia. Não é questão de escolha, mas, tão somente, um desejo de ordem subjetiva que toma o sujeito. Quando o sintoma é a psicanálise, pode haver um analista em deformação. Na prostituição ou na poesia, não é diferente. O sujeito também é tomado pelo inconsciente.

No desejo da prostituta há o desejo de ser desejado. Arrisco-me a dizer que a linguagem mais apropriada da prostituta é o corpo, que o sintoma se manifesta via corpórea. Isso me lembra o momento autoerótico, narcísico, em que a criança se ama. Entretanto, a prostituta já está adiante, já que há um outro nessa relação. Dessa forma, ser desejada remete aos primeiros momentos de vida, em que o outro (pai) a observa, a deseja. Há um pai simbólico rondando a prostituta. Há uma relação intrínseca com a lei – não é à toa que o ato de prostituir seja considerado transgressão social, embora tolerado socialmente. Haveria (na promiscuidade da prostituição) um ato simbólico incestuoso. Todos os homens representariam o homem, o pai, a lei, o Outro.

Há uma diferença entre poeta-analista e a prostituta. Tanto o poeta quanto o analista não vão ao real do sexo. O poeta, via imaginário, pode construir um novo horizonte (um mundo melhor ou pior aos olhos do poeta): pode haver um poema que insulte o rei (mas a morte será simbólica ali). O analista, por sua vez, pode ocupar (via transferência) diversos lugares, simbólicos, para o analisando: ora como pai, ora como amante etc. Entretanto, para o sujeito entrar em análise é necessário que a ordem simbólica permaneça, ir ao ato sexual  poderia romper essa relação transferencial. Ou seja, estou a dizer que a prostituta é aquela que vai ao ato: o real do sexo comparece. Mas no final de tudo, tanto analista como o poeta e a prostituta, ocupam o lugar de objeto “a”, pequeno resto. Já não se sabe quem é o poeta (apenas o efeito da poesia); somente o efeito da análise do sujeito (fim de análise); só o alívio da fantasia e da libido serão postos após o ato com a profissional do sexo. 

A prostituta deseja ser desejada como a filha perante o pai. Além: o desejo da prostituta está diretamente ligado ao desejo inconsciente infantil, o incesto. A prostituta responde a um desejo infantil de ter o pai, ou seja, ela procura, nas relações sexuais, um pai que possa existir ao menos por alguns segundos. A relação com o pai teria deixado resquícios. Esse pai teria deixado sinais que retornariam na puberdade. Poderia ser pai que tivesse falhado perante a ordem normativa, mas não só. Talvez um pai que nos excessos de carinhos tivesse feito a filha desejá-lo tão profundamente que, após as fases erógenas, ela tivesse desejo de retornar àquelas carícias. Enfim, na prostituição feminina há resquícios do pai retornando. 


(texto não finalizado)

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