Bicho-home


Nasci aqui mesmo e não pretendo sair tão cedo. Meus pais, Ravié e Mona, que Deus os tenha, fundaram esse vilarejo há uns quarenta anos – eu nem nascido era, meu pai! Papai foi homem de visão; percebeu que esse matagal tinha bicho chique: onça pintada, tamanduá bandeira e bicho preguiça. Naquela época, não precisava dessas coisas de papel passado, não! Bastava dizer no dente e o negócio não voltava atrás! Assim fez meu falecido – papai comprou todas essas terras sem um cruzeiro no bolso.

Já tinha plano – pensa que não? Anunciou em tudo quanto é lugarejo "venha conhecer bicho importado: europeu, asiático e americano". A peãozada vinha de longe ver os animais, mas ninguém sabia diferenciar qual era o estrangeiro. Era aí que morava a ousadia do pai! Ele logo começou a oferecer cursos para ensinar a distinguir os supostos bichos de outros países. No começo nem minha mãe botou fé, mas logo, logo tinha uma bruta gente querendo descobrir a arte do bicho de fora. Papai começou cobrando uma galinha, depois uma vaca... Fez tudo aqui assim, sozinho-de-zinho!

Essa gente pensa que a vida é fácil. Falo é nada! Prefiro me lembrar de papai, que bobo não era! Eu continuei os negócios do pai... "Filho bom é de outra laia!", dizia o velho. E, modéstia a parte, sou forte como era o trator do meu pai, minha astúcia é grande, de ver o povo corar. Continuei os cursos, contudo, com a morte do pai, as coisas foram modificando, a clientela estava minguando. É que Zé-da-Magia, dono de circo, resolveu entrar no pário. O que Zé tinha de forte, tinha de burro, era como um pasto sem gado. Seria fácil tirar o Zé da jogada, porém preferi usar os serviços dele para continuar os projetos do pai. Incumbi a ele a tarefa de ministrar os cursos: Zé ensinava o povo que vinha de fora a ver os bichos exóticos de outra maneira. Eu, porém, fiquei com a parte de fazer os animais ficarem distintos. Enquanto Zé convencia a multidão com palavras e gestos bonitos, eu inventava os animaizinhos. Criava espécies de tudo quanto é jeito: peixes de cores diversas, onça sem pinta, com pinta, sem pinto. Os brutos apareciam de longe para entender o que acontecia com os animais, ninguém tinha resposta.

A sacada de papai foi fornecer palestras, cursos, aulas ao povo que acredita em cruz viva. Eu, que nunca fui de falar muito, preferi inventar novos bichanos. Claro que era preciso o mínimo de talento para que ninguém descobrisse minha astúcia. Usava as magias do Zé para que todos se distraíssem e logo apresentava o novo bicho: Leão-de-Sete-Cordas, Peixe-Cabra, Cachorro-Juba-Leão etc. Nosso negócio já estava consagrado para além do vilarejo: era doutor, político e toda espécie de terno que vinha entender as aparições de novos seres.

Acontece que na vida os rumos mudam como égua desdentada perdida num redemoinho que se aproxima. Passei a olhar minha pele, meus cabelos, meus dentes, tudo de maneira diferente. Via minha boca no espelho, entretanto, parecia faltar algo. Meus dedos não estavam conforme gostaria, contudo, não sabia exatamente como os queria. Pintei meus dentes caninos de preto; gostei, mas não foi o suficiente. Tatuei patas de animais nos dedos, colei couro de Jacaré-Peludo (espécie rara criada por mim) no abdome, implantei dentes de sabre na minha boca... Tudo parecia em vão! Eu não me sentia bem.

Nesse pé, os negócios iam de mal a pior, isso porque o Zé-Magia percebera meu estado de fraqueza (minha reclusão excessiva) e aproveitou-se disso para continuar sozinho a empreitada iniciada pelo pai. Eu já não recebia ninguém em casa, somente meus animais – aqueles elaborados cuidadosamente por mim – tinham livre acesso ao meu quarto. Os Cachorros-sem-Patas, Onça-sem-Pinto, Cabra-Zebra, todas as espécies criadas por mim viviam constantemente comigo, conversávamos horas a fio. Cheguei a colocar um aquário no meu quarto somente com minhas obras de arte aquáticas –  peixes de toda sorte! 

Os peixes pareciam sem graça inicialmente, porém foi com o passar do tempo (já havia passado mais de ano que eu não saia do quarto) que os bichos passaram a ter sentido. Era por eles que eu esperava! Observava os bichos de cores tão diversas e dava a ele remédios aleatórios, mas, como reação, mudavam de cor. Jogava no aquário dipirona, refrigerante, cerveja, tudo que vinha na cabeça... O incrível é que funcionava bem: quando não morriam, mudavam de cor, de jeito, de forma. O encanto não cessava! Quase todos os dias meus filhos, cientes da minha situação, traziam novos peixes – era a única maneira de eu os receber. Na verdade, os animais que me traziam eram como pedágio obrigatório a quem queria me ver. Lógico, somente minha família tinha a curiosidade de saber como eu estava. 

O gostoso da vida é que se o homem faz um filho macho – macho pra valer! –, o filho acaba por cuidar do pai. Era minha vez, entretanto, não queria me entregar àquela sina. Precisava dos meninos porque sentia falta de novos bichos e, ao mesmo tempo, não conseguia sair daquele asqueroso quarto. Minha filha, todos os dias, fielmente, me trazia comida três vezes ao dia, sempre acompanhada por algum animal rejeitado pela comunidade. Às vezes, Joana, minha caçula, trazia sapo, rã, cobra... Ela adorava os répteis – eu mais ainda. Rafael, meu filho mais velho, gostava de me mostrar fotos de sua vasta criação animalesca. De quando em vez, ele trazia peixinhos, fruto de novas invenções e uma imensidão de fotos. Apesar de Zé-da-Magia ter rompido com minha família, meus filhos continuaram os negócios, claro, não com a clientela de antes, mas com a criatividade jamais vista. Eu passava horas contemplando o árduo trabalho do meu filho, tentando entender a técnica usada por ele, mas nem sempre era possível compreender o ofício. Os dias passavam com complacência. Aos meus filhos, o tormento os havia resignado – já tinham se acostumado com minha situação. Quanto a mim, os Peixinhos-Mancos, rara espécie criada por Rafael, me comoviam como nunca.

Mais uma virada de ano: os fogos de artifício rompiam a noite e eu calmamente conversava com Rasta, um Peixe-Manco. Eu dizia sobre as dificuldades que o pai tivera outrora, que a vida era isso mesmo... Essas coisas que eu costumava contá-los nos dias de feira. Quando, como num despertar, percebi que o problema não estava nos animais... Era preciso que eu mesmo me tornasse outra coisa! Saquei o peixe do aquário e o esfreguei à exaustão no meu corpo. Em seguida, peguei um dente de sabre e rasguei minha pele rapidamente... Gatos banhados a urucum foram triturados no meu corpo. De soslaio, olhei, já havia sangue por toda parte. Botei a mão no aquário, trouxe Rasta para perto do solo e o misturei ao sangue. Rapidamente, tirei o resto de roupa do corpo e, nu, pus-me a tomar a gosma que cobria o quarto. 


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