O espantalho

People are strange
when you're a stranger
(People are strange, The doors)


Aqui é campo, mata fechada mesmo! Nasci nessas terras e morei junto com meus pais até o falecimento dos dois. É, pode parecer estranho, mas sou filho único (pelo menos é o que me contaram) e não conheço outras terras. Confesso que não falta curiosidade... A coragem é que deve ter nascido bem longe daqui.

Hoje fui tomado por um ato de coragem: a escrita. Minha mãe era professora aposentada de língua portuguesa e sempre dizia que a escrita é uma caminhada: "As quedas são consequências da aprendizagem, Fabiano". Sei disso e concordo com ela... Mas, nesses últimos dias, depois da morte dos meus pais, fiquei ainda mais confuso. Papai e mamãe viajavam constantemente à cidade e sempre me advertiam dos males urbanos - como defesa, jamais me levaram nessas viagens. Entendo o amor deles... Como eles sempre diziam: "amor é um cuidando eterno". 

E não é só isso! Meus pais sempre diziam que eu tinha uma vocação crucial: zelar das plantações. Eles iam à cidade e resolviam os problemas relacionados à lei (papai era tão certo que todo ano pagava uma fortuna para o Leão!). Quando chegavam da viagem, o sol raiava incansavelmente sobre o canavial e as pragas estavam bem longe dali. Lembro que todo contato que eu tinha com as pessoas da cidade era através dos caminhoneiros que buscavam nossa joia, a cana-de-açúcar. Fazia bem minhas obrigações: conversava pouco para não atrapalhar o carregamento.

Tínhamos alguns vizinhos perto da fazenda, mas, por bem, não conheci nenhum deles. Quando em raras ocasiões eles vinham nos visitar, mamãe logo me levava para o porão, que, por sinal, era um lugar maravilhoso. Ali, embaixo da casa grande, além de iluminação, havia meu hobby predileto: canas prontas para serem descascadas. Ficava ali chupando cana e pensando na plantação! Planejava meticulosamente meus dias seguintes... Ainda, tinha o Jotão... meu cachorro, meu amigo! Jotão sempre me acompanhava quando ia campear. Ele gostava de caçar - buscava animais de todo gênero nos dentes. Ah, eu sabia como era perigoso aquilo! 

Um dia, era um dia belo de sol radiante, eu e Jotão saímos para espantar as pragas. Quando estávamos perto do nosso destino, Jotão avistou um animal rasteiro... Correu velozmente, como só ele sabia, mas dessa vez não retornou tão cedo. Fiquei em prantos por dias e, como se não bastasse aquele sofrimento, Jotão voltou muito machucado, completamente esfacelado. Aquilo partiu meu coração! Tratei calmamente dele... Bastante tempo de cuidado, Jotão foi se recuperando: ficava todo serelepe, todo corre-solto pela manhã. Entretanto, eu sabia da minha responsabilidade - como podia ter deixado meu fiel companheiro vulnerável a toda sorte de ataques? Tinha sido bastante inconsequente! Agora, sim, meu companheiro passou a andar seguro comigo, de coleira ao pescoço. 

Papai era muito amável! Ele só não gostava das pragas que assolavam a plantação. Não me esqueço do dia que papai chegara de cabeça quente da cidade e percebeu que as pragas tinham atacado o canavial. Aquele dia, eu tirara para passear com Jotão. Papai não perdoou minha ausência e apanhei como um burro empacado. Fiquei alguns dias de salmoura. Como foi doído! Mas sei que era preciso. Aprendi a não desobedecer os pedidos do pai, porque ele sempre sabia como agir conosco. Jotão é que não gostou nada daquela surra... Ele ficava chorando do meu lado, enquanto mamãe curava as minhas feridas. Os olhos dele pareciam exigir vingança! Eu, prudente como sou, desistia Jotão daqueles intentos... Em vários momentos percebi o olhar entristecido do meu fiel companheiro, o rosnar vingativo, como só competem aos cães. Jotão queria morder papai, cabeça de cachorro, vai entender!

Minha mãe... Ela sempre estava por perto para aplacar minha dor. Mamãe me dizia do valor daquela surra, o amor de papai (que nunca duvidei!) e, ainda, que Jotão não queria vingança, mas que estava triste com tudo aquilo, assim como ela. Sinceramente, quanto a Jotão, mamãe não convenceu. Ele queria pegar papai mesmo! Cachorro pensa assim mesmo, é instinto! Era uma época legal. Gostava de cada centímetro do meu porão, dos latidos de Jotão, do amor de papai e mamãe... Ah, depois da morte de papai as coisas mudaram repentinamente. Não gosto de escrever sobre isso.  Penso que não é a escrita um ato de coragem como mamãe insistia... mas escrever o que dói que é coragem autêntica. 

Mamãe e papai foram à cidade e não mais voltaram. Deixaram tudo por aqui esperando ansiosamente o retorno de ambos. Os dias passaram silenciosamente. Jotão me olhava entristecido pedindo o retorno dos meus pais, mas nada. Nenhuma notícia! Evito pensar sobre o que aconteceu... Um dia desses vieram aqui um casal junto com um rapaz de terno, olharam toda a casa e campearam pelo canavial. Como papai sempre dizia, fiquei junto com Jotão no porão. Mas Jotão também não resistiu à ausência e faleceu. Acho que foi no dia seguinte à ida dos estranhos... Ele não avisou nada, morreu. Fiz o sepultamento digno de meu fiel amigo. Ah... não sabia o que andava acontecendo comigo!....

Só depois da morte de Jotão é que comecei a entender: a morte dos meus pais e de Jotão era só um anúncio para eu assumir minha verdadeira identidade. Isso acalma meu coração!... Passam os dias e eu começo a perceber que devo ficar aqui nesse ponto (onde eu sempre ficava com meu fiel companheiro). É bem perto da mangueira, no quintal, pertinho de casa. Fico aqui, pensando em tudo que está acontecendo... Papai e mamãe aparecerão a qualquer momento! Aquele casal: por que vieram aqui? E eu, aqui, perto da mangueira, no quintal. Hoje, não deixo um pensamento passar: penso detalhadamente em cada um... E vou tomando consciência, cada vez compreendendo melhor o meu devir. Meu corpo é templo do pensar e, por isso mesmo, cubro toda parte de mim com palhas e pinto meu corpo com urucum... Durmo aqui mesmo, perto da mangueira - sempre chupando cana, sempre, sempre. É certo, percebo o que mamãe e papai tanto receavam de dizer a mim, a minha verdadeira função social, minha identidade de fato: o espantalho da vegetação. 



Comentários

  1. Seu conto retrata muito bem a neurose obsessiva, o medo do mundo, a culpa que carrega do pai, a resignação de uma vida sem prazeres.
    Interessante que repete o movimento com o cachorro né? Fazendo com o animal o mesmo que fizeram com ele, colocaram-no na coleira.
    E resume tudo numa palavra, espantalho. Aquele que vive em função dos designos do outro, só poderá ser mesmo um espantalho.
    Adorei!

    LARISSA RIBEIRO (Psicanalista praticante da NELP)

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  2. Mais cedo ou mais tarde a confusão chega, principalmente quando a vida da uma revira volta sem a gente perceber. De qualquer forma nunca se está totalmente preparado.

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  3. Só que esperar muito ouvindo underpressure, rs, é uma decisão que daqui prali causa arrependimento.

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