o inumano de cada um



isto aqui não é uma discussão sobre candidatos presidenciáveis
não é tampouco um manifesto de esquerda ou de direita
quando os ânimos muito se afloram


afirma-se aqui o inumano de cada um
talvez a maior heresia do século XXI


então, que assim seja, eis aí um estandarte sem séquitos: o anti-humano de cada um!


levantar essa questão é um tanto embaraçosa
isso porque o século das luzes ofuscou o animal interior
e fizeram o humano uma coisinha frágil a ser preservada
ora, a lei da preservação das espécies existe bem antes de qualquer revolução burguesa
mas não havia ali a negação do animal

a dificuldade é ainda maior porque muitos associam o anti-humano às experiências violentas do                                                                                                                                         [século passado]

mas não se trata disso
não se trata da defesa de nenhum "ismo"


o anti-humano é, portanto, o animal de cada um
e, insisto, ele está em extinção
prestes a ser totalmente devorado

quando o ímpeto animal corre na veia, a sociedade da vida logo o repudia
é, então, contra a sociedade da vida que o animal insurge
e é simples entender o porquê:
neste século, orgulham-se da vida excessiva e sem graça; estufam o peito e proclamam: "somos todos pela vida"
esquecem de dizer: "somos todos pela mesma coisa: a coisa-vida"
ou seja, são todos contra o tropeço
contra qualquer torção da alma; a diferença, em nossa sociedade, não tem lugar algum

viver tornou-se sinônimo de ausência de riscos
a chamada dignidade humana é antes uma negação do animal interior
tornaram-nos a todos frágeis e dóceis (mas não menos produtivos!)
anularam o inumano como forma de ampliar ainda mais o controle social
esse ser frágil, que requer cuidados, é o mesmo que atua na vigilância do inumano em si e nos outros


a anulação de todas as pequenas e incontáveis mortes diárias é o que fundamenta o discurso                                                                                                                          [dos bons costumes do viver]
       
já não se pode "morrer" na postura contemplativa do acaso
é risco de perder o trabalho; é risco de ser indigno no século da vida
é risco de não ser controlado

não há pequenas mortes sem riscos. eis aí a maior heresia do nosso tempo!
o tempo do agora não suporta as rupturas e adversidades advindas do que foge do controle
as pequenas mortes, as rupturas da vida controlada, não pode coabitar com o tempo dos bons                                                                                                                                                 [costumes]

daí que as identidades diversas são mesmo incentivadas hoje em dia
porque identificar-se é também aprisionar o ser a um ponto fixo; é negar a morte
cada vez que o sujeito diz "eu" de si mesmo, ele é colonizado em mais um contrato do viver
as identidades são maneiras de vigiar a gramática do sujeito
é até pode ser uma ampliação da gramática da vida
mas é preciso dizer que logo a identidade dissonante é incorporada às técnicas do bem viver

em suma, a sociedade dos bons costumes não permite que haja contradição com os pressupostos                                                                                                                                             [humanistas:]
"a vida é frágil e deve ser preservada a todo custo"
"a vida é frágil e não se pode correr riscos"

violência? palavra herética do nosso tempo
o ócio? é violência nesse tempo
a vida só é vida quando anulam as pequenas mortes
o fracasso? é violência nesse tempo
a vida só é vida quando anulam as pequenas mortes
a depressão? é violência nesse tempo
a vida só é vida quando anulam as pequenas mortes


nem mesmo o sexo foi capaz de fugir do cerco da gramática dos bons costumes
o sexo só é autorizado quando há o controle do risco zero
eis o contrato implícito da vida: "não pode atacar, não se pode correr riscos"
sexo entre homens e animais? jamais!


tudo, pois, que extravasa, avança sinal, hoje, é rechaçado!
nos tempos sombrios da moral excessiva, o animal foi quase por completo abatido
não se pode confessar, nem mesmo ao psicólogo
(o fiscal da moral e dos bons costumes)
as pretensões animalescas
logo, o padrólogo receitará uma série de exercícios de bons costumes
"crer no bem e o mal se afastará!"

nessa igreja da vida moderna, a arte é a bruxa do século
a arte quando se põe em prática reatualiza o animal interior
anuncia sonhos, imaginações de um tempo em que o animal corria solto
é por isso que a sociedade dos bons costumes luta com todas as armas contra a arte do homem animal
a alma artística não é capaz de coabitar com o silenciamento animal
é o fim da arte; o fim do inumano


e não são somente os artistas o centro da atuação dessa sociedade
o corpo talvez hoje seja o maior alvo dos bons costumes
nesse tempo, há várias receitas do que não se pode fazer com o corpo
"o animal não pode sequer violentar o próprio corpo"
"o suicídio é a fraqueza do humano, logo, deve ser combatido"
assim, o próprio animal não decide sobre a sua vida
eis o paradoxo dessa sociedade: ao mesmo tempo que reivindica a vida, ela a censura do viver, do                                                                                                                                                     [morrer]

de bom grado, o próprio sujeito deveria abdicar do animal interior, diz essa sociedade
em nome de quê?
da vida, da gramática do bom viver
mas quem fiscaliza essa coisa toda?
os juízes, meus caros, são todos aqueles que lutam pela vida excessiva e sem graça do século XXI
os juízes são todos aqueles que embarcaram na balela da imortalidade em vida
sem risco, sem mortes: pela vida!


quando se expõe as bizarrices das condenações públicas da sociedade dos bons costumes do viver
[que sequer permite a ampla defesa, porque a morte, o sexo e a violência são palavras heréticas deste tempo: pronunciou? morte ou isolamento!]
não se está dizendo que as pessoas não praticam atos violentos
ao contrário, as posturas ditas anti-humanas continuam insistindo em comparecer
inclusive no interior dos muros dos paladinos da moral
a despeito de tudo e todos, o inumano insiste em manifestar
porque, na verdade, essas ocorrências nada mais são que nós mesmos: animais sociais
o aspecto social nunca foi capaz de tamponar totalmente animal de cada um
[embora este século venha ainda mais forte combatendo o animal singular, este insiste em viver]


é daí que ensaiar a favor do animal interior é também lutar pela vida
mas não a vida padronizada, ausente de contradições
é, pois, reafirmar a diferença, a singularidade animalesca do sujeito

ao contrário do argumento de que o humano é "deus acima de tudo!"
é preciso enxergar (sem as torpes luzes iluministas) que em cada um brilha a diferença:
da norma, dos bons costumes, da vida humana

a vida [repleta de contradições]
longe das redes sociais [onde o animal morreu!]
as pequenas mortes do cotidiano
[longe dos holofotes da autorrealização]
a arte
o sexo
desde que não publicizados
eis a vida [e ainda é possível vivê-la, o animal insite]
ainda é possível tirar horinhas de sossego
contemplar o vazio
sustentar o bicho insano da diferença [eis o desafio deste tempo sombrio]

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